Allegro molto appassionato (rápido, com muita paixão) – assim começa este que é um dos mais célebres concertos para violino e orquestra de toda a História da Música. O Op. 64 de Felix Mendelssohn é uma obra que surpreende de princípio ao fim, desde logo quando, no início, o solista se sobrepõe à orquestra entoando uma melodia que inquietou o compositor durante mais de meia década, essa mesma que hoje todos reconhecemos de imediato.
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O Concerto para Violino e Orquestra em Mi Menor não é somente um dos concertos românticos mais apreciados de sempre. Para lá de ser a mais célebre das onze composições para solista e orquestra que Mendelssohn compôs ao longo da vida, foi a sua derradeira obra orquestral e, sobretudo, uma das obras mais inovadoras que assinou, em virtude de romper com várias convenções estabelecidas. Em meados do século XIX, e apesar da profunda evolução estilística que aconteceu nas décadas anteriores, mantinham-se invioláveis alguns procedimentos herdados do período barroco. Divididos em três partes, os concertos alternavam no primeiro andamento as intervenções da orquestra e do solista. Na exposição introdutória dos temas melódicos, a orquestra tendia a estender-se no tempo, protelando cada vez mais a entrada do solista. Mendelssohn resolveu evitar esse «impasse». O solista participa na exposição introdutória, lado a lado com a orquestra – sem cerimónias, portanto.
O planeamento genérico da partitura foi desenhado em 1838, quando surgiu a ideia desse tal início que não deixava o músico «em paz». No ano anterior, quando contava somente 27 anos de idade, fundara o Conservatório de Leipzig. Convidou então para a posição de concertino da orquestra um dos melhores violinistas do seu tempo, Ferdinand David (1810–1873), quem já conhecera na década anterior por ocasião de um encontro em Berlim. O concerto foi pensado precisamente para este músico percursor de Joseph Joachim, de quem foi professor. David colaborou ativamente na composição da obra, designadamente no aconselhamento sobre questões técnicas relacionadas com a parte do solista. O projeto só viria a ser concluído seis anos mais tarde, em setembro de 1844, e estreado em março do ano seguinte.
Àquele início surpreendente, seguem-se pouco mais de dez minutos de música (o primeiro andamento) marcados por um aceso confronto entre as duas partes, ou não se tratasse de um verdadeiro «concerto». Mendelssohn evitou deliberadamente a mera exibição virtuosística do solista, o que relegaria a parte orquestral para um papel eminentemente decorativo. Ainda assim, não deixou de introduzir uma outra inovação. Seria expectável a inclusão de um cadenza no final dos andamentos. A cadenza é uma secção da partitura em que a orquestra se silencia dando oportunidade ao solista para brilhar. Porém, esse momento é antecipado, surgindo bem no coração do primeiro andamento, logo após a secção de desenvolvimento – antes da reexposição, portanto.
Os três andamentos prosseguem com uma forte relação temática e, sobretudo, tocados sem interrupções. Seria esta uma terceira novidade que procurava responder ao embaraço que por vezes se sente quando a plateia bate palmas entre os andamentos. A fim de o evitar, Mendelssohn interligou os andamentos e eliminou quaisquer vestígios de pausa. O som do fagote que «enlaça» os dois primeiros andamentos é particularmente elucidativo desse propósito. A música desenvolve-se sempre com naturalidade, sem mudanças de página abruptas. O segundo andamento é dominado pela melodia do solista, fazendo ouvir uma canção com forte pendor dramático. Para terminar, no último andamento ouve-se outra melodia que todos reconhecerão, desta vez com um caráter bastante mais animado, sobre ritmos dançáveis. Também aqui, Mendelssohn logra conciliar na perfeição o virtuosismo técnico com a integridade da obra artística.
Rui Campos Leitão
Imagem: Ferdinand David (1810–1873), o violinista que estreou o Op. 64 de F. Mendelssohn em 1844 | Fonte Wikimedia Commons