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Sinfonia do Destino

A Quinta Sinfonia de Beethoven é um verdadeiro monumento do imaginário coletivo do Ocidente. Serve a representação de uma consciência individual determinada a enfrentar todas as adversidades a fim de alcançar ideais próprios. Para lá da dimensão puramente estética, desafia-nos em cada instante para formular considerações de teor psicológico e filosófico, caminhos que se emaranham nas teias da subjetividade, mas que são poderosamente tentadores. Propõe-nos uma viagem interior por uma experiência que se pretende universal, projetando-se na existência de cada um de nós, de toda a Humanidade. Chamam-lhe «Sinfonia do Destino».

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Numa das primeiras biografias de Ludwig van Beethoven, da autoria de Anton Schindler, lê-se que o compositor terá certo dia afirmado que, na vida, temos de lutar contra o destino quando este bate à porta, tal como acontece no início da Quinta Sinfonia. A veracidade deste testemunho não é comprovável, mas a narrativa popularizou-se de tal maneira que é comum ver-lhe associado o epíteto de «Sinfonia do Destino». Acende-se assim uma das mais impressionantes ambiguidades do legado musical de Beethoven: tanto se limita a uma dimensão puramente musical, imersa nas qualidades dinâmicas e formais da partitura, como sugere interpretações livres de alcance simbólico. Se dermos seguimento a esta maneira de escutar, confrontamo-nos com uma ideia de herói que, ao contrário da tragédia grega, em que as dificuldades eram superadas graças à intervenção divina, depende agora do seu sacrifício e da sua vontade. Ele próprio, é responsável pela condução dos acontecimentos. Talvez, por isso, fosse mais justo chamar a esta obra «Sinfonia da Superação».

Desde o início, o ímpeto ameaçador do motivo principal faz-se acompanhar de outro com caráter mais ligeiro e otimista, numa pretensa dialética entre a luz e as trevas. Anuncia-se o conflito dramático, os contrastes expressivos, a mútua influência dos opostos. Sem cerimónias, rompe o silêncio com um motivo nuclear em torno do qual tudo se desenrola numa orgânica coerente que se transforma ao longo do tempo, como que revelando diferentes facetas do herói. O primeiro andamento pode assim expressar a predisposição para lutar, para enfrentar desafios e frustrações, reúne forças para enfrentar o futuro com confiança.

O segundo andamento é um momento de ponderação e de assunção de compromisso. Destacam-se desde logo dois temas melódicos. O primeiro apresenta um pendor reflexivo e intimista. O segundo é majestoso e enaltece o estado anímico. A técnica de variações sucessivas sobre um tema revela-se estruturante, sempre alternada com a imponência grave do segundo tema. Desenha-se assim um percurso reflexivo, pontuado por hesitações. Mas tudo culmina em tom afirmativo, pleno de propósito e convicção.

No terceiro andamento a vontade surge como agente de mudança. É quando tudo acontece. São três episódios de transformação do motivo germinal que apontam a um estado hesitante, apreensivo e, por fim, com decisão. Pelo meio, surge uma secção introduzida pelas cordas graves cuja frivolidade, por entre fugas e padrões rítmicos dançáveis, parece evocar um ambiente de convivialidade, como que projetando a dimensão humana do herói. Por fim, um impassível crescendo desemboca no episódio triunfal, o último andamento. É a consumação da vitória, tempo de celebrar – não o destino, mas a sua superação. Afinal, o homem pode controlar e influir sobre a sua própria sorte.

Deambulações à parte, com esta sinfonia, Beethoven elevou a música ao estatuto da arte que melhor traduz os impulsos e as necessidades mais profundas da condição humana, conferindo-lhe a missão de revelar a essência da existência humana. A música converte-se assim numa linguagem misteriosa, capaz de estabelecer um diálogo inefável com as emoções e com as ideias. Não é bastante o entretenimento. Busca-se o sublime, o verdadeiro poder da música enquanto forma de arte.

 

Rui Campos Leitão

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