O Projeto MUSICAR teve início com uma ação de divulgação sobre a estrutura e objetivos do projeto junto da comunidade interessada, visando também a angariação de contributos.
O primeiro laboratório decorreu presencialmente na sede da Metropolitana no dia 24 de fevereiro e foi participado por 10 entidades externas à Metropolitana, entre 35 pessoas na assistência. Foi ocasião para esclarecer e discutir os contornos precisos do projeto, ouvir testemunhos que retrataram sumariamente a atual oferta formativa musical junto das comunidades de cegos e de surdos em Portugal, identificar metodologias e experiências já anteriormente ensaiadas e assinalar boas práticas para serem implementadas. Foram desde logo definidas as principais linhas de intervenção, em particular a necessidade de separar numa primeira fase a formação para cegos e a formação para surdos, em virtude das especificidades próprias de cada uma das áreas.
No imediato, foram realizadas duas ações de formação destinadas a cerca de duas dezenas de funcionários administrativos e auxiliares de educação da Metropolitana, de maneira a garantir que toda a estrutura de funcionamento da casa estaria habilitada para receber e trabalhar com pessoas cegas e pessoas surdas. A primeira sessão, intitulada “Pessoas com cegueira e baixa visão: Ver com outros olhos!” realizou-se no dia 31 de março e teve como formadora Dídia Lourenço, docente de Educação Especial e presidente da Associação Bengala Mágica. A segunda sessão, intitulada “A pessoa Surda e a Língua Gestual: Mitos e Realidades”, realizou-se no dia 14 de abril e teve como formadora Patrícia Carmo, coralista do projeto Mãos que Cantam e mestre em Língua Gestual Portuguesa e Educação de Crianças Surdas pela Universidade Católica Portuguesa.
Seguiram-se então 10 ações de formação destinadas a professores, alunos de cursos de música do ensino superior, músicos profissionais, auxiliares de educação, técnicos de produção, comunicação, e mais interessados provenientes de outras instituições. Com periodicidade semanal, sempre nos finais de tarde de sexta-feira entre 2 de março e 12 de maio, os conteúdos destas sessões percorreram temáticas como a musicografia braille, metodologias de memorização e treino auditivo para cegos, noções básicas de língua gestual portuguesa, orientações para o ensino coral e de instrumentos de cordas e sopros a pessoas cegas ou com baixa visão e o ensino de instrumentos de percussão a pessoas surdas ou com audição reduzida.
Todas estas sessões foram reconhecidas e certificadas como Ações de Curta Duração pelo Centro de Formação da Pró-Inclusão – Associação Nacional de Docentes de Educação Especial nos termos do Despacho n.º 5741/2015, alterado pela Declaração de Retificação n.º 470/2015, de 11 de junho, publicada no jornal oficial da República Portuguesa. No total, foram emitidos 146 certificados.
As primeiras duas ações intitularam-se “Introdução à Musicografia Braille” e foram orientadas pelo co-coordenador do projeto MUSICAR, Rui Magno Pinto, também responsável pela área artística do projeto Filarmónica Enarmonia. A Musicografia Braille é uma ferramenta de mediação incontornável no processo de ensino-aprendizagem da teoria da música para alunos cegos, amblíopes ou com baixa visão. O conhecimento dos seus fundamentos, ainda que rudimentar, pode proporcionar a formação musical desta comunidade além da memorização auditiva, com o recurso da representação simbólica para apreensão conceptual do fenómeno musical. Estas sessões introduziram o tema, questionaram soluções, avaliaram condicionalismos e, sobretudo, abriram perspectivas aos professores de música para adquirir novas competências pedagógicas e vislumbrar projetos futuros nesta área.
As duas sessões seguintes foram dedicadas a temáticas relacionadas com o ensino da música para alunos surdos. Sempre na presença de um intérprete de língua gestual, ambas tiveram como formadores o maestro e os coralistas do projeto Mãos que Cantam. Refletiu-se sobre a presença da música no universo dos Surdos, identificando a oportunidade da apreensão dos conceitos musicais e a maneira como estes influenciaram o desenvolvimento estrutural da Língua Gestual.
Demonstrou-se que é possível expressar em Língua Gestual Portuguesa ideias musicais, tais como a noção de intensidade, de polifonia, de métrica e a estrutura formal de uma peça musical, para lá da interpretação dos poemas das músicas, recriando uma peça musical de raiz.
Realizaram-se ainda 3 sessões dedicadas ao ensino de instrumentos musicais para alunos cegos ou com baixa visão, tendo como formadores professores do projeto Filarmónica Enarmonia. O ensino do instrumento para estes alunos levanta vários desafios pedagógicos. Pretendeu-se assim recomendar boas-práticas para o ensino e para a prática musical de pessoas com deficiência visual. Foram também dados a conhecer métodos e orientações para o ensino dos diferentes instrumentos, aplicações e programas que permitem a preparação de outros materiais didáticos, adaptações morfológicas necessárias ou aconselhadas dos instrumentos e outros equipamentos tecnológicos facilitadores. Cada uma das sessões foi dedicada, respetivamente, (1) às madeiras e aos metais, (2) às guitarras, teclas e percussão e (3) às cordas friccionadas e à prática de conjunto.
As restantes 2 sessões, dedicadas ao Ensino da Música e à Prática Musical para Alunos Surdos, foram orientadas pelas professoras Filipa Teixeira Lopes e Susana Salgueiro e pelo professor Paulo Cunha. Foi apresentado o projeto RitmoS implementado no Centro de Educação e Desenvolvimento Jacob Rodrigues Pereira da Casa Pia de Lisboa entre 2003 e 2021, o qual visava desenvolver nos alunos surdos, de forma lúdica, as competências de atenção, observação, memorização, identificação e compreensão de aspetos afins ao fenómeno musical através da participação num ensemble de bombos.
Trabalharam-se competências rítmicas, sempre em grupo, através do movimento do corpo, da prática instrumental e de jogos de linguagem. Esta ideia viria a inspirar a solução encontrada para fazer música de conjunto com os alunos na última fase do projeto MUSICAR. Na última sessão foram abordados temas como a adaptação dos conteúdos curriculares de música em função da especificidade/grau de deficiência auditiva, a relação dos ouvintes com a música na surdez, a relação dos surdos com a música, a importância do tato e da visão na relação dos surdos com a música, a importância da oralidade na produção e interpretação musicais por parte dos surdos e a importância do movimento e da gestualidade na produção e interpretação musicais por parte dos surdos.
Finda esta etapa, realizaram-se nos dias 16 e 26 de maio mais 2 laboratórios, desta vez por videoconferência, destinados a fazer uma síntese das matérias focadas nas 10 Ações de Formação MUSICAR. Procurou-se definir recursos pedagógicos para serem aplicados e ensaiados nas fases seguintes. No total, participaram 60 pessoas nestes laboratórios. Os primeiros encontros exploratórios aconteceram nos ateliês «Vem MUSICAR Connosco», destinados a alunos surdos (17 e 24 de junho) e a alunos cegos ou com baixa visão (17 de junho e 1 de julho) com idades superiores a 6 anos.
Estes ateliês serviram para introduzir as aulas MUSICAR que decorreram mais tarde, de setembro a novembro. Sempre com inscrição gratuita, decorreram na Sede da Metropolitana e ofereceram uma primeira aproximação à formação musical. Primeiro, foram apresentados alguns instrumentos musicais pela mão de professores da Metropolitana com supervisão de profissionais com experiência no ensino da música para estas comunidades. Depois, fez-se Prática Musical de Conjunto – em coro, com alunos cegos, e num ensemble de bombos, com alunos surdos. A experiência e a informação reunidas nestes ateliês permitiu projetar as aulas MUSICAR da melhor maneira. Participaram nestes eventos 10 professores das escolas da Metropolitana. No conjunto dos 4 ateliês, foram feitas 27 inscrições.
As 10 semanas de Aulas MUSICAR decorreram entre 23 de setembro e 25 de novembro. Realizaram-se aulas individuais de aprendizagem de violino, piano, fagote, flauta, percussão, trompete e violoncelo, conforme a preferência manifestada pelos alunos inscritos. Vários destes alunos experimentaram aprender dois instrumentos em simultâneo. Aos alunos cegos, juntaram-se alunos normovisuais que frequentaram as aulas de Teoria Musical e Musicografia Braille, para lá das aulas de coro. Estas aulas proporcionaram quer aos alunos quer aos professores momentos de aprendizagem salutares, mas sobretudo a compreensão das implicações do ensino regular de música. O empréstimo de instrumentos foi uma solução bem sucedida, na medida em que ofereceu aos alunos a possibilidade de se familiarizarem com o instrumento estudando em casa de acordo com a rotina habitual da frequência de um conservatório.
Constatou-se que a adesão de pessoas surdas para a frequência de aulas de música aos sábados era diminuta. Se bem que muito bem sucedidos, somente dois alunos surdos se dispuseram para aprender percussão e um segundo instrumento, designadamente piano e violoncelo. O número reduzido não permitia formar uma classe de conjunto com bombos ou um coro de língua gestual. Por isso, buscou-se uma alternativa. Foram contactadas as 3 escolas com maior número de alunos surdos existentes na cidade de Lisboa, designadamente propondo-lhes acolherem aulas semanais de percussão para alunos surdos. A adesão foi entusiástica, quer por parte da administração das escolas, quer por parte dos professores, alunos e famílias. Entre setembro e a data do Concerto Final realizaram-se 25 sessões de prática instrumental de conjunto (bombos) com alunos surdos nas três escolas de ensino, que se tornaram assim parceiras do projeto MUSICAR. Foi ainda ensaiada a possibilidade de formar com estes alunos um coro de língua gestual, mas sem sucesso, em virtude do domínio rudimentar da língua gestual portuguesa por parte dos alunos – parte significativa eram crianças ou adultos com comorbilidades diversas.
O concerto que culminou o projeto realizou-se no dia 29 de novembro e assumiu três propósitos. O primeiro foi celebrar o encontro dos participantes no projeto: alunos, professores, personalidades e entidades que de algum modo apoiaram e acompanharam de perto a iniciativa. O segundo pretendeu mediatizar a importância do combate à discriminação das diferenças, em particular no que respeita ao acesso à cultura e ao ensino das artes. O palco é, por excelência, um lugar de representação que favorece a inscrição da presença de todos e o enfrentamento de fatores de exclusão. O terceiro foi MUSICAR juntos – praticar Música juntos –, independentemente da qualidade da participação de cada um; seja tocando um instrumento, cantando, escutando ou contribuindo para que assim aconteça.
A maior parte do programa compreendeu o Concerto para Piano N.º 3 de Beethoven e a Sinfonia N.º 29 de Mozart. Depois, juntaram-se à orquestra o coro do projeto “Mãos que Cantam” e o Coro Participativo do projeto MUSICAR. Ouviu-se então o célebre “Coro dos Escravos Hebreus” que se destaca do terceiro ato da ópera Nabucco de Verdi. Este é um hino de lamento, resistência e esperança que ressoa por simpatia na orientação deste projeto. Por fim, juntaram-se os bombos e o gesto musicado de dezenas de alunos das Escolas Básicas Parque Silva Porto e Quinta de Marrocos e do curso de Formação e Qualificação de Adultos do CED Jacob Rodrigues Pereira da Casa Pia de Lisboa. Estreou assim a música que Lino Guerreiro compôs para este momento, lembrando-nos que há muitas maneiras de sentir e compreender o mundo, e que a Arte é um meio privilegiado para o fazer.