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Os Humores de Brahms

Tal como as sinfonias de Beethoven com número par, a Segunda Sinfonia de Brahms é por vezes conotada com um período de relaxamento que o compositor se ofereceu após o esforço gigantesco despendido com a sinfonia anterior. Seria então um exercício de escrita descontraído, porventura menos cuidado, em matéria de composição. Mas esta leitura não resiste, sequer, à primeira audição. Ao cabo de uma dúzia de compassos, logo percebemos que é muito mais do que isso. Com ironia, o próprio compositor chamou-lhe «Sinfonia Feliz». Mas também disse, noutra ocasião, que a partitura deveria ter uma orla negra, tal era a melancolia que a trespassava. Em que ficamos?

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Como se tivesse sido arrancada das trevas, a pretensa luminosidade da Segunda Sinfonia de J. Brahms é frequentemente apresentada como uma evolução espirituosa e bem humorada da sinfonia anterior. Com evidência, esta é uma abordagem bastante redutora. Uma escuta atenta logo revela meandros extraordinariamente complexos, se bem que discretos e avessos ao aparato sinfónico romântico. Considerando a sua «narrativa emocional», esta é uma obra com muitas caras. O relevo da componente melódica e dos padrões rítmicos emprestados da Dança empresta a algumas partes uma ambiência bucólica evocativa de um idealizado fascínio pela natureza – chamaram-lhe, por isso, Sinfonia Pastoral, sugerindo reminiscências da Sexta Sinfonia de Beethoven. Noutras partes, porém, assiste-se a uma inquietação provocada por transições dinâmicas repentinas, apontamentos trágicos, breves exaltações festivas, momentos de contemplação introspetiva que assentam em sonoridades lúgubres, tais como o tema introdutório dos violoncelos, ou as intervenções dos tímpanos e dos trombones que se ouvem de seguida.

Nenhuma sinfonia de Brahms pode ser entendida como uma ilustração postal. Se assim fosse, projetar-se-iam as margens do lago Wörthersee com os Alpes Austríacos em fundo, cenário onde no verão de 1877 a Sinfonia em Ré Maior foi composta – também Mahler ali compôs mais tarde, durante as «férias». Em correspondência trocada com Clara Schumann e com o compositor e maestro Vincenz Lachner, o próprio Brahms falava da disposição elegíaca, da melancolia e das dúvidas existenciais que o inspiraram. Para lá disso, esta é uma obra estruturalmente sólida, firmada na tradição clássica, mas com um cunho pessoal inconfundível. Neste sentido, é curioso pensar que a monumentalidade da Primeira Sinfonia abriu caminho à depuração criativa da segunda. O arrebatamento épico e o enfrentamento do legado de Beethoven, enquanto processo catártico, terão aberto caminho ao sublime histórico brahmsiano na sua dimensão sinfónica.