Em julho de 1782 Wolfgang Amadeus Mozart fez estrear no Burgtheater a ópera em língua alemã O Rapto do Serralho. Tinha-se instalado em Viena no ano anterior, e esta era uma das suas primeiras encomendas. No início do projeto enviou uma carta a seu pai em que descreveu a abertura que estava a compor para esse efeito: «Envio-lhe catorze compassos da abertura, que é muito curta e alterna fortes e pianos, a música turca aparece sempre nos fortes». O libreto ajuda a perceber o cabimento da «música turca». Mas não só.
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O libreto da ópera O Rapto do Serralho espelha-se numa fronteira de culturas, entre dois impérios que coexistiram lado a lado durante séculos – o Império Habsburgo e o Império Otomano. Tudo se desenrola em torno da desventura de duas jovens ocidentais, uma nobre espanhola e sua criada inglesa, que se vêem raptadas pelos muçulmanos, aprisionadas no palácio (no serralho) do imperador e destinadas a serem vendidas para um harém. A ação decorre em registo de comédia e culmina numa libertação conquistada pelos respetivos pretendidos… e pelo consentimento magnânimo de um Paxá.
Uma das primeiras impressões que se tem ao ouvir a música composta por Mozart para esta representação é o exotismo, uma categoria estética que se cruza frequentemente com a prática musical. De natureza ambígua, esconde, na maioria das vezes, referências enigmáticas por detrás de determinações de gosto próprias de cada tempo e lugar. Resulta sempre de uma apropriação da identidade do Outro, mas revela bastante mais daquele que toma a iniciativa do que acerca da cultura visada.
Se recuarmos até à cidade de Viena do século XVIII, é importante lembrar que era um espaço onde conviviam músicos provindos de toda a Europa Ocidental e músicos oriundos do Leste Europeu e da Ásia, entre os quais ciganos húngaros, russos e turco-otomanos. Todos traziam consigo sonoridades próprias, que sumiam por detrás de um estilo internacional (que se tornou clássico) mas eram verdadeiros arquétipos culturais. No caso dos turcos, a referência mais óbvia para os habsburgos eram as bandas dos janízaros, a elite dos exércitos dos sultões otomanos cuja memória ficou bem gravada nos austríacos em virtude dos confrontos militares dos séculos anteriores. É daqui que surge o estilo «alla turca» que tantas vezes aparece no repertório daquele período, com uma repetição rítmica obstinada, harmonias rudimentares, luxuriantes percussões e a sonoridade penetrante dos sopros que se juntavam naqueles agrupamentos. Muitas vezes estas imitações eram manifestamente exageradas, de maneira a obter um efeito de comicidade. Mas tal não nos deve induzir no erro de pensar que tudo se resume no ridículo. Quando duas culturas se aproximam (neste caso dois impérios), e independentemente de quaisquer supremacias ou sujeições, existe sempre «contaminação», partilha e transformação mútua. Por isso, a abertura desta ópera não se limitará no mero exotismo. Ecoa um registo híbrido de convivência que, porventura, celebra a diferença.