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Manifesto de Ano Novo

O Concerto para Trompete de Johann Nepomuk Hummel foi composto em finais de 1803 para se juntar às árias que abrilhantaram o banquete de Ano Novo na corte dos Habsburgos. Para lá da notória influência de Mozart, em particular do estilo lírico de Don Giovanni, termina com uma excerto da ópera Les deux journées de Luigi Cherubini. Esta citação não era inocente. Tinha óbvias conotações políticas, numa altura em que as tropas de Napoleão avançavam na direção de Viena.

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No topo da primeira página do manuscrito autógrafo do Concerto para Trompete de Hummel lê-se a seguinte inscrição a tinta preta: «Concerto a tromba principale». A designação «principale» não se deve aqui ao facto de se tratar do instrumento solista, mas sim em virtude de a partitura explorar o registo mais grave do instrumento. Assim se chamava essa particular valência que só estava ao alcance dos melhores instrumentistas e com recurso a uma trompete com características técnicas adequadas. Neste caso, o trompetista era Anton Weidinger (1766-1852), virtuoso que integrava a Orquestra da Corte de Viena e tocava com uma (então moderna) trompete com mecanismo de chaves. Weidinger conseguia assim tocar mais confortavelmente em tonalidades que não estavam ao alcance de uma trompete natural. Por sinal, Joseph Haydn já havia composto um concerto para este mesmo músico sete anos antes, pelas mesmas razões.

Só quatro meses depois da estreia deste concerto, em abril de 1804, Hummel substituiu Haydn no lugar de Mestre de Capela na corte dos Esterházy, passando a servir o príncipe Nikolaus II. A sua encomenda chegou ainda da corte imperial. Desse modo, a inclusão da música de Cherubini destinava-se a satisfazer uma vontade expressa pela Imperatriz Consorte Maria Teresa de Nápoles e Sicília, numa altura em que as tropas de Napoleão se aproximavam perigosamente – a ocupação consumou-se três anos mais tarde. Esta obra pode ser entendida, portanto, como um manifesto patriótico. O libreto da ópera de Cherubini passa-se em meados do século XVII. A marcha evocada por Hummel nos últimos compassos ouve-se no final do segundo ato, quando o Conde Armand, perseguido por razões políticas, é ajudado por um aguadeiro parisiense para se esconder do exército do Cardeal Mazarino. A marcha acompanha o momento em que as tropas se afastam, já ao longe, depois de perderem a sua pista. Estreada em 1800, esta ópera logo se tornou muito popular. Passava a mensagem pós-revolucionária de que, independentemente da classe social a que pertençam, todas as vítimas do poder despótico merecem proteção.

 

Rui Campos Leitão