Devemos considerar as versões adaptadas de uma obra musical como obras novas, originais? Talvez não seja muito relevante para a fruição da música – «puramente» dita –, mas esta é uma pergunta que o Concerto para Dois Pianos e Orquestra de Mário de Laginha nos coloca, tanto mais sendo o próprio quem assina as (re)criações.
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Tudo começou em 2009, num Concerto para Piano e Orquestra encomendado pelo Festival Internacional de Música do Algarve, o qual foi interpretado na primavera desse ano pelo próprio Mário Laginha à frente da Orquestra Nacional do Porto. Em 2016 transmudou para Concerto para Dois Pianos, então lado a lado com Pedro Burmester. Era propósito fazer a redução para piano da partitura de orquestra, para fins de ensaio. Mas a imaginação do compositor não resistiu à tentação de buscar um novo «texto» para esse piano que se juntava. Passaram entretanto cinco anos, e desabrocha agora, como uma flor, este Concerto para Dois Pianos e Orquestra, também com Burmester, mas desta vez com a Orquestra Metropolitana de Lisboa. A dificuldade foi agora acrescentar mais alguém à conversa, já que estava fora de questão a orquestra fazer «cara de paisagem». Definitivamente, as partes orquestrais de 2021 não poderiam ser as mesmas de 2009.
Portanto, e apesar das evidentes afinidades que as três versões têm entre si, não se trata exatamente da mesma obra. Tal acontece porque Mário Laginha é um músico que entrecruza com naturalidade influências aparentemente inconciliáveis. Se o desafio inicial o colocava inevitavelmente diante de um formato canónico da música europeia ocidental – o Concerto –, também é certo que a sua vivência nos meandros do Jazz o levam a manter uma relação mais informal e dinâmica com a música que faz. Na primeira vertente, a partitura inicial, para piano solo e orquestra, recalca os tradicionais três andamentos, na disposição rápido-lento-rápido. O diálogo entre solista e orquestra é criteriosamente desenhado e até há lugar a uma Cadência, já perto do final. Por outro lado, e sem prejuízo da coerência artística, nunca assume o planeamento formal que se esperaria. Por sua vez, o universo sonoro do Jazz está presente de maneira subtil, sem citações evidentes. Sobressaem harmonias, melodias e ritmos característicos, sobretudo no último andamento, mas nunca comprometem a oportunidade das intervenções da orquestra. A música de Laginha é território de encontro entre estilos e tradições. Levanta questões e, também por isso, forma identidades que não se confundem. Não é Jazz. Não é clássico. É Mário Laginha, de corpo e alma.
Rui Campos leitão