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Noite e Nevoeiro

Dez anos passados sobre o armistício, o cineasta francês Alain Renais recebeu do Comité de História da Segunda Guerra Mundial o convite para realizar uma curta metragem focada na tragédia dos campos de concentração nazis. A sua primeira reação foi recusar. Entendia implausível tal ser feito por alguém que não tivesse testemunhado tamanhas atrocidades. Transcendia a sua compreensão. Acabou, porém, por ceder, diante da ideia de que se impunha sacudir o silêncio e despertar consciências, de modo a que nada semelhante voltasse a acontecer. Em colaboração com o compositor Hanns Eisler e com o poeta Jean Cayrol (este último foi prisioneiro em Gusen), intitulou o filme com uma expressão que entre os nazis designava aqueles que «desapareciam»… na noite e no nevoeiro.

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«Noite e Nevoeiro» é um filme documental realizado em 1956 por Alain Resnais. Tem a duração aproximada de meia hora e consiste no relato cru, sem redundâncias ou subterfúgios, de um dos episódios mais horríveis da História da Humanidade: o massacre de judeus e de outras minorias nos campos de concentração e extermínio alemães durante a Segunda Grande Guerra. Alterna imagens de arquivo com filmagens a cores feitas nos próprios locais, entretanto desativados, obtendo desse modo uma atmosfera reflexiva que se revelou pioneira no modo de compreender o Holocausto. Para o efeito, contribui também a banda sonora, com música original do compositor austríaco Hanns Eisler, um dos primeiros alunos de Arnold Schönberg e colaborador de toda a vida de Bertold Brecht.

Em virtude da suscetibilidade do tema, não surpreende que o filme tenha sido alvo de muitas críticas, em particular a exposição ostensiva do sofrimento das vítimas e dos seus cadáveres. Esta é, precisamente, uma das questões mais interessantes que coloca. Ao contornar o mero exercício de repúdio e condenação, interpela subtilmente o espectador acerca da natureza humana, e também da sua condição de voyeur. A pista é-nos dada quando a dada altura do texto de Cayrol, diante das imagens dos crematórios, se ouve a seguinte frase: «Atualmente, os turistas fazem-se fotografar aqui». Porque se trata de um filme que consiste numa montagem simultaneamente cinematográfica e fotográfica, recorda-se aqui o último livro de Susan Sontag, «Diante da Dor dos Outros» (2003), onde a escritora norte-americana reflete sobre a compreensão da guerra por parte daqueles que não a vivenciaram, em particular através das imagens. Assinala o poder que tem a fotografia para caracterizar realidades abomináveis, em virtude da sobreposição ambígua da objetividade e da imposição de «um ponto de vista». A representação do sofrimento provoca necessariamente desconforto, pela exploração estética do horror, pela possibilidade de este ser contemplado como espetáculo, pela sobreposição das narrativas política e moral – «É isto o que os seres humanos são capazes de fazer».

Também não se estranha que muitas opiniões tenham defendido que o filme não deveria ter música. Afinal, a apropriação romântica que o cinema já então fazia das bandas sonoras tendia, precisamente, a acrescentar atributos emocionais ao que era projetado na tela. Foi o próprio realizador quem fez questão de convocar a música de Hans Eisler, mas com o propósito deliberado de lhe atribuir uma função diferente. Alguns anos mais tarde, numa entrevista, referiu-se à música do filme nos seguintes termos: «A música é praticamente o principal neste género de filmes. Impõe-se uma música precisa, seja o filme artístico realizado com imagens da câmara em movimento ou com planos fixos. Ela dá ritmo ao filme, e mais ainda. Em “Noite e Nevoeiro”, quanto mais violenta é a imagem, mais suave é a música. Eisler queria mostrar que o otimismo e a esperança do homem existem sempre em segundo plano». Com efeito, a música está sempre presente. Mas destaca-se particularmente nas pausas da narração, como se acrescentasse sentido a imagens cuja significação as palavras não conseguem alcançar. Com aparente tranquilidade, contribui para que o espectador se posicione com espírito crítico algures entre a elegia e a esperança.

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