Aos 26 anos, Miguel Sobral Curado, antigo aluno da Escola Profissional da Metropolitana, assina um “Poslúdio em Lá Menor”, um concerto que esta quinta-feira será interpretado pelo agrupamento Percussões da Metropolitana, no Instituto Politécnico de Viseu, em mais uma sessão do programa “Música e Ciência”. Na véspera da atuação, interrompemos o ensaio e conversámos com o autor sobre a sua consciência ambiental, os desafios que se colocam à humanidade e como a Metropolitana influenciou a sua vida artística.

Quase três anos depois de teres feito um arranjo para a “Sagração da Primavera”, de Stravinsky, estás de volta à Metropolitana, agora com uma obra escrita por ti, encomendada para este concerto. Como foi receber este convite?
Foi ótimo. Uma espécie de continuação do trabalho feito anteriormente, que, pelos vistos, teve qualidade suficiente para justificar este convite. E depois, porque dá continuidade a esta parceria que já tenho com o Marco [Marco Fernandes, diretor do agrupamento Percussões da Metropolitana e que foi professor de Miguel Sobral Curado na EPM] há muitos anos. Além disso, é sempre um prazer voltar à Metropolitana, uma casa que me diz muito, porque eu próprio estudei cá. Para mim, tudo isto é familiar. É como voltar a casa.
A obra que escreveste, que vai ser estreada esta quinta-feira em Viseu, chama-se “Poslúdio em Lá Menor”. Tem uma forte componente ambiental.
Esta obra surgiu com a premissa Lisboa Capital Verde e divide-se em cinco andamentos. A obra, que começa com uma espécie de tremor de terra tempestuoso, tem uma mensagem clara: chegámos a um ponto de não retorno no nosso planeta. É preciso agir. Das duas, uma: ou a humanidade começa, de facto, a fazer mudanças sérias na sociedade e na forma como ela é organizada, ou o planeta vai desgastar-se muito rapidamente.
Digamos que já entrámos na reserva…
Exatamente. Daí também o título falar de um poslúdio e não de um prelúdio, porque se fosse um prelúdio era sobre algo que vem a seguir. Mas na realidade nem eu nem ninguém sabemos o que vem a seguir. O que sabemos é que estamos a fechar um ciclo. Daí o nome da obra.
Essa consciência habitual que a obra revela é uma preocupação tua desde novo ou é recente?
Desde cedo, sim. Tenho 26 anos e cresci muito nessa realidade. Tive a sorte de ter uma boa educação ambiental. Os meus pais são vegetarianos desde há muito tempo e a minha educação sempre teve uma grande consciência ambiental, política e social. Portanto, eu sempre tive um grande abrir de olhos em casa. E depois na escola fui desenvolvendo essa consciência.
De que forma essa consciência se foi desenvolvendo no teu dia-a-dia?
Também sou vegetariano, por exemplo. São pequenas coisas, pequenos hábitos do dia-a-dia, que cada um pode mudar, como por exemplo, a redução dos consumos de carne, os plásticos, a separação do lixo e a reciclagem, etc. Mas, depois, existe a outra parte: isso é tudo incrível mas, na verdade, continua a haver uma indústria gigante que está fora do nosso controlo. E chegar à mudança nessa indústria é que é o maior desafio. São preocupações que fazem cada vez mais parte do quotidiano.
Acreditas que a tua geração, e até as gerações mais novas, posteriores à tua, têm o chip já inserido com a formatação ambiental?
Sim, acho que em parte sim. Atualmente, tendo em conta toda a velocidade da informação e as dinâmicas das redes sociais, estes tópicos passaram a ser uma tendência, uma realidade nas discussões entre jovens. Tudo isso tem muita influência. É cada vez mais fácil sermos tocados por esses temas, porque eles são cada vez mais falados. Depois depende do que fazemos com essa informação. Há os jovens que a aproveitam e há outros que não.
Durante anos, logo a seguir ao 25 de Abril, falava-se muito da música de intervenção e como os músicos e os artistas tinham um papel decisivo na disseminação de uma mensagem. Acreditas que isso ainda continua a ser verdade? Enquanto músico, sentes que é possível fazeres esse trabalho junto dos teus públicos?
Sim, embora eu tenha uma dupla posição sobre essa questão. Isso é sempre a velha reflexão sobre se a arte deve ter um papel útil ou deve poder ser apenas entretenimento. Será que deve ter um papel educacional?
O que achas?
Acho que… depende [pausa]. Como eu sou uma pessoa muito politizada, eu tendo, enquanto artista, a ter algumas mensagens políticas muito subliminares, que em mim são naturais e servem como base ao processo de criação. Mas, por outro lado, eu acho que a arte também serve para… não servir para nada. E acho que isso também é importante. Não se deve colocar essa pressão sobre os artistas. Porque há criação que vale só por si, não precisa de mensagem.
Voltemos à Metropolitana. Tu foste aluno da Escola Profissional da Metropolitana (EPM), fizeste cá o ensino secundário. Como foi essa experiência?
Foi ótimo, foi incrível. Eu fiz parte do segundo ano da EPM. Quando cá entrei, ainda só havia uma turma. Nós fomos a segunda turma. E é incrível perceber como esta escola cresceu ao longo destes anos. Para mim, foi muito bom. Quando cá entrei, já tocava, mas era mais por mim, nunca tinha estudado. E entrei para cá para o 10.º ano e fiz uma espécie de um contrato com o Marco, que era entrar para cá sem saber ainda música e fazia a escola profissional em quatro anos, em vez de três, reunindo toda a bagagem que não tinha. E assim foi, porque o Marco é um professor incrível e leva os alunos atrás dele.

O facto de estares a trabalhar tão de perto agora com Marco Fernandes, alguém que te ensinou tanto no teu percurso escolar, é uma espécie de devolução?
[sorriso] Não sei se é uma devolução. Sinto-o mais como uma troca, uma partilha. No fundo, o que acontece é que, hoje em dia, eu já consigo pegar naquilo que ele me deu e fazer uma troca. Um intercâmbio de igual para igual.
Quando cheguei à sala onde vocês estavam a ensaiar, tu estavas ao lado do Marco, sentado, e à tua frente os percussionistas interpretavam a tua obra. Tu estavas a olhar alternadamente para a pauta e para os jovens músicos. O que é estavas a sentir naquele momento?
[pausa] A sentir-me ótimo [gargalhada]. Tenho uma vantagem: sendo percussionista como eles, e tendo passado por esta escola, consigo rever neles os problemas que eu próprio tive. Identifico-me muito com eles e sei o que provavelmente eles estão a sentir e as dificuldades que estão a ter. Esta peça é uma música muito contemporânea, porque foi feita agora, e tem uma linguagem muito versátil, que passa pela improvisação do ensemble e da comunicação. Eles não estão habituados a isto e creio que consigo antever essas dificuldades porque eu também já as tive.
Vivemos hoje num mundo de muitas solicitações e a vossa geração cresceu numa época fértil em inspirações, porque a Internet vos coloca tudo a toda hora à vossa disposição. No teu caso, que inspirações são as tuas?
Sem dúvida. Essa ideia de diversificação, de inspiração cruzada, foi uma das minha batalhas quando fui estudar composição. Foi precisamente aceitar toda a minha bagagem e influências, que vinham de fora da minha cultura contemporânea ou clássica. Quando um músico começa a compor, não é óbvio perceber como é que se vão buscar essas influências. Mas elas estão lá sempre. E estão lá sempre a dizer: “nós estamos aqui, usa-nos” [sorriso]. E há um dia em que conseguimos abrir a caixa e conseguimos usar uma. E depois vê-se que essa uma faz sentido e vamos buscar outra. Eu ainda estou nesse processo, de sempre juntar várias coisas. Desde muito pequeno, eu sempre gostei de experimentar. Experimentava isto, depois fartava-me e experimentava outra coisa. Atualmente, essa continua a ser a minha abordagem. Eu toco guitarra elétrica, toco percussão, estudei composição, faço coisas de performance, já fiz bastante teatro, dança. Procuro sempre diversificar.
Um artista é mais completo quando salta os muros que se erguem à sua volta?
Seguramente que sim. Por isso é que eu luto todos os dias para que esses muros não se ergam. Do ponto de vista da abertura mental, esse exercício é incrível. Mas isso também tem as suas desvantagens: quanto mais coisas eu faço, mais coisas tenho de estudar.
Uma última questão, Miguel. Estamos a conversar de máscara, relativamente afastados, enfim, estamos na normalidade em que as nossas vidas se tornaram. Para um músico e criativo, como é que têm sido estes quase oito meses de pandemia? Em março, quando a Covid-19 chegou a Portugal, tínhamos a esperança num arco-íris que chegaria lá mais para o verão. Agora, já sabemos que isto vai demorar muito mais e que a tal cenoura ainda está longe…
Acho que um artista vive isto como qualquer outro profissional, com a certeza que a única certeza que temos é que isto é tudo muito estranho. Tudo isto é demasiado surpreendente, inesperado e grande. Do ponto de vista criativo, depende um pouco da fase da vida em que estamos. No meu caso tento não pensar muito na cenoura que está lá ao fundo. Eu sei que ela está lá ao fundo, mas não penso muito nela. Quando lá chegarmos, chegámos.
