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Sinfonia à Juventude

Os anos que se seguiram à Segunda Grande Guerra Mundial coincidiram com o período em que Joly Braga Santos atingiu a maturidade artística. Foi então que, em apenas quatro anos, compôs quatro das seis sinfonias que fizeram de si o maior sinfonista português de sempre. Em particular, a Sinfonia N.º 4 foi completada aos vinte e seis anos de idade e é dedicada à Juventude Musical Portuguesa, instituição da qual foi mentor e cofundador.

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Em 1948, Joly Braga Santos beneficiou de uma bolsa de estudos atribuída pelo Instituto de Alta Cultura que lhe permitiu estudar pela primeira vez fora do país. Assim, no verão daquele ano, estudou Direção de Orquestra com o maestro alemão Hermann Scherchen, na cidade de Veneza. Teve aí a oportunidade de contactar diretamente com o panorama musical europeu do pós-guerra. Para lá dos ensinamentos estritamente musicais que influenciaram o seu percurso criativo, trouxe consigo o conceito das Juventudes Musicais, modelo institucional criado na Bélgica e em França com intuito de difundir entre os jovens o conhecimento e o gosto pela música num enquadramento ideológico humanista. Com a preciosa ajuda de personalidades de maior capacidade organizativa e influência junto do poder político, conseguiu implementar a ideia em Portugal. Pela mesma altura, recebeu a encomenda para compor uma nova sinfonia por parte do Gabinete de Estudos Musicais, organismo criado em 1942 no âmbito da «política do espírito» de António Ferro com vista à produção de conteúdos para a Emissora Nacional de Radiodifusão. Esta era também uma importante fonte de financiamento para compositores como Luís de Freitas Branco, Armando José Fernandes, Cláudio Carneiro, Frederico de Freitas e Rui Coelho. A obra ficou concluída em dezembro de 1950 e estreou a 28 de janeiro de 1951 no Teatro Tivoli sob a direção do próprio compositor.

Juntamente com as Variações sobre Um Tema Alentejano e o Concerto em Ré que lhe seguiram, a Sinfonia N.º 4 anuncia o final de um ciclo criativo caracterizado pelo estilo neoclássico de pendor romântico e um lirismo frequentemente influenciado pela música tradicional portuguesa – a Sinfonia N.º 5 só surgiria dezasseis anos mais tarde, já com ressonâncias das vanguardas modernistas. Mas a grandiosidade desta sinfonia deve ainda bastante aos processos cumulativos aplicados no desenvolvimento dos temas melódicos, um procedimento indissociável dos ensinamentos de Luís de Freitas Branco. Por sinal, foi composta na casa de férias deste seu mestre, próxima de Reguengos de Monsaraz. O primeiro andamento carrega o ânimo bucólico dessas paisagens, sempre com grande potencial imagético. Neste sentido, é curioso especular sobre as influências cinematográficas na escrita de Braga Santos. Havia naquela época dezenas de salas em Lisboa que se enchiam para ver filmes de Roberto Rossellini, Alfred Hitchcock, Orson Welles e John Ford, entre tantos outros. O Tivoli era uma delas, ali bem próxima do Éden-Teatro e do então novíssimo Cinema São Jorge (o Cine-Teatro Monumental, o Cinema Império e o Cinema Condes tardaram pouco tempo em abrir portas). A influência das sinfonias de Vaughan Williams também se faziam notar nas orquestrações cheias e cristalinas com recurso a desenhos melódicos amplos e rítmicos vigorosos nas cordas e nos metais.

O segundo andamento é o momento mais introspetivo da sinfonia, uma atmosfera marcada pela melancolia, quase fúnebre. Braga Santos explora aí harmonias modais que evocam uma disposição emocionalmente despojada, também com influências da música tradicional portuguesa. Prosseguem então os contrastes rítmicos do terceiro andamento, texturas mais leves, ritmos e danças populares desfiguradas. O último andamento volta a obscurecer, mas conclui de maneira surpreendente. É quando a dedicatória floresce num hino reminiscente da Sinfonia N.º 9 de Beethoven e que, a pedido do maestro Silva Pereira, se transfiguraria em 1968 nas palavras entoadas por um coro. É bom exemplo da preocupação do compositor em «construir uma música que […] pudesse falar com o Homem comum com simplicidade e clareza.». Mas é, sobretudo, um manifesto de otimismo sobre a juventude e sobre o futuro.

 

Rui Campos Leitão

 

Imagem: Joly Braga Santos em 1950 | Fotografia de Manuel Alves de San Payo (Arquivo de Documentação Fotográfica DGPC)