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O Violino Emancipado

O que faria um violinista se os companheiros de orquestra o abandonassem em palco diante de um público expectante? Com o simples recurso de um violino, imaginemo-lo recriar as componentes fundamentais da música orquestral: melodias, confrontação tímbrica, harmonias, articulações rítmicas… tudo isto numa forma coerente. No final da década de 1710, Johann Sebastian Bach foi além da nossa imaginação e compôs as célebres Sonatas e Partitas para violino solo BWV 1001-1006, «senza basso accompagnato».

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As Sonatas e Partitas que J. S. Bach concluiu cerca de 1720 são hoje uma referência incontornável do repertório para violino. Mas não aconteceu sempre assim. Foi uma conquista que se estendeu por três séculos. A primeira publicação impressa data de 1802. Foram tocadas em público somente em 1840, por Ferdinand David, e seguidamente por Joseph Joachim. A gravação de Yehudi Menuhin, de 1934, deu a conhecê-las ao grande público. Impuseram-se nos conservatórios, nos concursos e nas salas de concertos. Tornaram-se património de culto do nosso tempo.

Bach era um intérprete exímio no órgão e no cravo. Pode intrigar, por isso, que tenha dedicado tanto esmero a estas peças para violino solo – não era prática comum. Não existe explicação documentada. Talvez fossem dedicadas a Johann Georg Pisendel, um dos maiores violinistas então em atividade nos principados germânicos e que havia tocado a sua própria sonata para violino solo diante de Bach. Mas é bom lembrar que Bach iniciou a sua carreira de músico enquanto violinista, na corte de Weimar, cuja orquestra liderou a partir de 1714. Quando se tornou Mestre de Capela em Cöthen, em 1717, foi inclusivamente professor de violino. Poderia haver, portanto, propósitos didáticos. Por outro lado, nesta segunda fase da sua carreira podia aventurar-se em domínios insólitos da música profana e instrumental, mais liberto de obrigações sociais e religiosas.

Os violinistas mais famosos naquela época eram italianos, tais como Corelli, Vivaldi e Tartini. Ora, a música italiana era preeminentemente melódica, ao passo que a germânica se distinguia pela qualidade do contraponto e dos encadeamentos harmónicos. Nesta última, havia uma tradição de duzentos anos que desenvolvia técnicas polifónicas na escrita para violino, com bordões, texturas contrapontísticas, encadeamentos harmónicos complexos (cordas duplas ou figurações arpejadas), posições da mão esquerda próximas do cavalete e passagens rápidas, tudo isto com recurso a técnicas inovadoras. Juntam-se aqui nomes como Heinrich Biber, Johann Pachelbel e Johann Paul von Westhoff. Este último publicou seis suítes para violino solo em 1696 e conviveu com Bach em Weimar nos últimos dois anos de vida. Presume-se que lhe tenha despertado a vontade de contribuir para essa tradição que parecia buscar a emancipação do violino.

Na prática, as Partitas são suítes com número variável de peças reminescentes das danças de corte francesas. As três são neste caderno antecedidas por Sonatas com quatro andamentos que alternam tempos lentos e rápidos, uma estrutura que provinha das Sonatas de Igreja italianas. O primeiro e último andamentos da Sonata N.º 1, um Adagio e um Presto, são bons exemplos quer da redução minimalista dos recursos utilizados quer das sugestões implícitas que convidam à especulação do ouvinte. O Adagio desenrola-se sobre uma cadência de acordes inexorável e solenemente ornamentada com figurações rítmicas e melódicas. No Presto, as harmonias disfarçam os contornos irregulares da melodia. Em ambos os casos, é como se o compositor nos desafiasse para adivinhar algo que pensou mas não chegou a escrever.

 

Rui Campos Leitão

 

Imagem: Manuscrito autógrafo do primeiro andamento da Sonata N.º 1 de J. S. Bach, BWV 1001 | Fonte: Wikimedia Commons