«Lontano» significa «Distante», em italiano. É também título de uma composição musical datada de 1967 e que, à semelhança de outras assinadas por György Ligeti, integra bandas sonoras de filmes; designadamente, The Shining, de Stanley Kubrick, e Shutter Island, de Martin Scorsese. Sem prejuízo dos méritos cinematográficos, quando se escuta Lontano ao vivo, impressiona serem apropriações tão redutoras da criação original.
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Stanley Kubrick já havia utilizado a música de Ligeti em 1968, no filme de ficção científica «2001: Odisseia no Espaço», onde se ouve Lux aeterna.
Em The Shining (1980), inseriu excertos de Lontano por três vezes, sempre de maneira subtil – a primeira escuta-se quando a criança vê pela primeira vez as gémeas fantasmas. A música é assim associada a visões sobrenaturais, enquanto prenúncio de mistério. Já no thriller psicológico Shutter Island (2010), Lontano aparece mais vezes, desde logo no genérico de apresentação. Na prática, dispersa-se na conveniência da montagem do filme, aqui e ali para sublinhar ambientes sinistros. Subliminarmente, procura criar um efeito de incerteza em torno de personagens perversas e ambíguas. Lontano tem características que favorecem essa função: tem poucas variações rítmicas e dinâmicas, permitindo obter uma paisagem sonora estável que não interfere com o decurso da narrativa. A maior parte dos espectadores não toma consciência da presença da música nestes filmes, mas serve a chamada de atenção para lembrar que podemos já estar com ela familiarizados, ainda que sem o saber. Serve também para lembrar que a mesma foi pensada para ser tocada e escutada ao vivo, na sua plena integridade.
Em 1967 Ligeti lecionava em Estocolmo. Antes, tinha-se evadido de Budapeste para Viena, em 1956, e vivido em Colónia. Buscava então uma nova linguagem, evitando a primazia do ritmo e da melodia, explorando timbres pelo simples recurso da instrumentação. Apostava em processos geradores de sonoridades densas que se expandiam lentamente – chamou-lhe «micropolifonia». Pequenas variações intervalares e motivos curtos eram repetidos até à exaustão. As influências provinham da surpreendente combinação da música eletrónica com repertório polifónico dos séculos XVI e XVII, onde os processos imitativos e os cânones têm uma presença substantiva.
Foi então que compôs duas obras afins: Lux aeterna (1966) e Lontano (1967). Em ambas, as pautas sobrepõem-se e enredam texturas sonoras eminentemente estáticas. Mas a aparência é enganadora. Existem mudanças de pequena escala em cada momento. As melodias cromáticas servem de base à construção de um cânone indistinto que lembra lugares desabitados, sem vislumbre de interlocução ou discurso inteligível que valha a pena atender. Tudo imerge num regime paradoxal em que as minudências contrapontísticas projetam um efeito de imensidade.
Há, todavia, uma grande diferença entre as duas obras. Em Lontano, a orquestra toma o lugar das vozes a cappella. Isso impacta profundamente o resultado obtido. É possível então identificar três secções que se parecem com o fluxo e refluxo de uma onda. A primeira pode ser entendida como uma introdução e permite vislumbrar a construção progressiva do cânone, com a sobreposição sucessiva de vozes num desenho em arco, em jeito de clímax e conclusão. A segunda, sugere de início um afastamento longínquo. Logo se distingue pela transformação do cluster massivo em sonoridades mais nítidas, se bem que com densidade variável. A terceira parece emergir do silêncio, mas logo se espraia em acordes com uma expressividade ostensivamente dramática.
Rui Campos Leitão