Em 1953, entrevistado pelo musicólogo e crítico musical Claude Rostand, Francis Poulenc falou na rádio estatal francesa sobre a sua religiosidade.
«Meu pai, como a maioria das pessoas de Aveyron, era profundamente religioso. Ele era, sem ser restrito, muitíssimo religioso. Em 1935, depois do frescor da juventude, eu procurava dentro de mim um modo de expressão mais profundo, e foi, naturalmente, para a música religiosa que me virei, depois de fazer uma peregrinação a Nossa Senhora de Rocamadour. As Litanias à Virgem Negra foram a minha primeira composição sacra.»
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Em bom rigor, foi em agosto de 1936 que Poulenc percorreu de carro os noventa quilómetros que separam Uzerche – onde se dedicava naquele verão à composição – e Rocamadour, localidade situada mais a sul, na região da Occitânia. Encontra-se aí um santuário que desde o século XII presta culto a Nossa Senhora de Rocamadour, a Virgem Negra. Na capela em seu louvor expõe-se uma pequena imagem feminina talhada em madeira de cor negra, exemplar dos símbolos religiosos populares ancestralmente associados às simbologias da fertilidade e da ligação da mulher ao elemento Terra. Desde a morte de seu pai, em 1917, Poulenc mantinha-se afastado de qualquer tipo de devoção. A morte inesperada de Pierre-Octave Ferroud, seu amigo e também compositor, coincidiu com essa reaproximação.
A viagem resultou na composição das Litanias à Virgem Negra, uma obra que convoca o registo etéreo das vozes femininas, num coro a três partes, e a solenidade do órgão. Emprestava, assim, uma dimensão musical às litanias católicas, orações curtas e repetitivas em jeito de invocações – em 1947, o próprio compositor preparou uma versão que substitui o órgão por uma orquestra de cordas e tímpanos. Simultaneamente, dava expressão à polarização política entre as tradições rurais conservadoras e as reformas sociais progressistas defendidas pela coligação da Frente Popular que naquele ano assumiu o poder em França. Nos anos imediatamente seguintes, compôs a Missa em Sol Maior e os Quatro Motetos para um Tempo de Penitência.
O resultado sonoro é reminiscente da polifonia francesa renascentista. É predominantemente homofónico, com plena integração da música e da palavra. As harmonias são pontualmente dissonantes, mas genericamente afins ao fauxbourdon, o «falso bordão» em que a melodia principal é replicada inferiormente por outras duas vozes. Cantam-se súplicas como «Senhor, tenha piedade de nós», «Santa Virgem, Rainha e Padroeira, rogai por nós» ou «Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo, perdoai-nos».
Rui Campos Leitão
Imagem: Estátua da Virgem Negra exposta na Capela de Nossa Senhora de Rocamadour / Foto de Thérèse Gaigé / Fonte: Wikimedia Commons