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Impressões de Lacerda

Em 2023, Sérgio Azevedo «reduziu» quatro peças orquestrais do compositor açoriano Francisco de Lacerda (1869-1934) à dimensão de uma formação clássica, de maneira a permitir que sejam tocadas com maior frequência nas salas de concerto. As escolhas recaíram sobre os curtos poemas sinfónicos Dans le clair de lune, Almourol, Épitaphe e Moira Encantada.

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A música orquestral de Lacerda parece-se com paisagens sonoras, quase sempre assentes em laboriosas progressões harmónicas modais e texturas extremamente cuidadas. Não apresenta grandes melodias nem cadências rítmicas retumbantes, o que traduz a sua formação parisiense. Por um lado, demonstra pleno domínio da polifonia e dos matizes arcaizantes que eram apanágio da Schola Cantorum onde, para lá de música instrumental, estudou gregoriano e repertório sacro anterior ao século XIX. Por outro, o tratamento que faz da orquestra convida a estabelecer relação com as principais figuras da composição francesa da época – Lacerda foi aluno de Vincent d’Indy e conheceu Claude Debussy.

A sua música também sugere dimensões poéticas explícitas, como se comprova nestes títulos compostos ainda antes de regressar a Portugal, no final da década de 1920. «Dans le clair de lune» não esconde a alusão ao poema de Paul Verlaine celebrizado por Debussy. Em «Epitáfio», a expressão fúnebre é reforçada pela exaltação romântica da figura do herói. Juntam-se ainda «Almourol» e «Moira Encantada», duas orquestrações de peças para piano que integram o tríptico Levantinas, impressões de uma viagem realizada pelo compositor à Turquia em 1925.

O principal desafio que se colocou a Sérgio Azevedo foi encontrar alternativa para os naipes numerosos dos sopros; madeiras e metais. Mas também, e sobretudo, para as harpas. A harpa é um instrumento que imprime um carisma inconfundível na orquestra. Tais efeitos migram aqui para instrumentos como o vibrafone e o glockenspiel. Ainda assim, a natureza profunda da música de Lacerda mantém-se incólume.

 

Rui Campos Leitão

 

Imagem: Fotografia de Francisco de Lacerda nos anos 1920.