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Encruzilhada

No primeiro dia de abril de 1968 o Grupo Gulbenkian de Bailado estreou o derradeiro bailado de Francis Graça, com figurinos de Artur Casais e música de Joly Braga Santos. Resta-nos hoje a partitura de uma suíte orquestral manifestamente inspirada em danças tradicionais portuguesas. Tal parece contraditório, vindo do mesmo compositor que com 19 anos de idade escrevera na revista Arte Musical a frase «Deixemos os saloios em paz» – era uma reflexão crítica sobre as orientações estilísticas de Frederico de Freitas e de Fernando Lopes Graça. Tratava-se, porém, de um filão criativo ao qual o próprio não resistiu em diversas ocasiões ao longo da carreira.

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O catálogo de Joly Braga Santos apresenta várias obras com alusões explícitas à música tradicional portuguesa, tais como as Variações Sinfónicas sobre um Tema Alentejano (1951) e a Abertura Sinfónica N.º 3 (1953). O bailado Encruzilhada surpreende, por ser bastante mais tardio, numa fase em que o músico enveredava por sonoridades de pendor mais modernista. Mas havia uma razão de peso. Francis Graça, figura pioneira da dança em Portugal, já não coreografava havia mais de uma década. Antes, nos Bailados Verde-Gaio, trabalhara com os compositores Jorge Croner de Vasconcelos, Ruy Coelho, Armando José Fernandes e, por cinco vezes, com Frederico de Freitas, este último seu amigo desde o tempo em que foram colegas no Conservatório (onde estudou violino). Tudo apontava para que Frederico de Freitas mantivesse a parceria neste projeto que o trazia de volta a Lisboa após quatro anos vividos no Porto. A correspondência entre os dois revela detalhes de um novo bailado que se intitularia Tríptico. Mas os interesses de ambos divergiam, nesta fase.1 O convite da Gulbenkian acabou por redundar na escolha de Joly Braga Santos, na sequência imediata de duas outras encomendas: as Variações Concertantes e A Trilogia das Barcas.

Francis prosseguia na convergência entre o bailado clássico e as danças tradicionais, sem nunca se sujeitar aos dogmas formalistas de qualquer um deles. O enredo tinha muitas semelhanças com o Tríptico.2 Para lá dos protagonistas (os noivos), havia mais de 20 bailarinos (camponeses e fadistas). A história decorre numa aldeia portuguesa onde os camponeses celebram a boda de um jovem casal. De repente, um grupo de libertinos oriundo da cidade irrompe pelo cenário com disposição para se divertirem causando desordem. Afastam e tentam a noiva com a promessa dos luxos e dos encantos da cidade. Ela consegue, todavia, defender-se e escapar, retornando incólume aos braços do seu prometido.

Foram várias, as incursões de Joly Braga Santos no domínio do bailado. Desde logo em 1946, numa curta «Peça Coreográfica» para piano que a bailarina Georgina Villas Boas estreou no Teatro Nacional D. Maria II. Também vinha colaborando com o Verde-Gaio, designadamente em Alfama (1956), A Nau Catrineta (1959) e Tema Alentejano (1965). Encruzilhada estreou em 1968 no Teatro Politeama, com Isabel Santa Rosa e Carlos Trincheiras nos papéis principais. Muito embora a Fundação Gulbenkian tivesse iniciado atividade em 1956, o edifício sede só inaugurou em 1969. Por isso, o Ballet Gulbenkian apresentou-se até então em itinerância pelo país e, quando em Lisboa, alternando entre os Teatros Tivoli e Politeama, mais pontualmente no São Carlos, . O espetáculo fez depois digressão pela Covilhã, Braga e Guimarães. No verão de 1969 subiu à cena em Angola (Luanda e Benguela), Guiné (Nova Lisboa) e Moçambique (Lourenço Marques).

 

Rui Campos Leitão

 

1 Nota de agradecimento à Professora Doutora Luísa Roubaud pela partilha de informação sobre o projeto do bailado Tríptico.

2 Cartas de Francis Graça a Frederico de Freitas. Espólio de Frederico de Freitas, doado pela família à Biblioteca da Universidade de Aveiro em julho de 2010.

 

Imagem: Teatro Politeama / Foto do Estúdio Mário Novais