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El Amor Brujo

Em El Amor Brujo prevalece a poesia e a força que de imediato associamos ao flamenco. Na origem, trata-se de um bailado com música de Manuel de Falla estreado no Teatro Lara em 1915, em Malasaña, hoje uma das zonas mais históricas e «alternativas» da cidade de Madrid. Baseado numa lenda popular, o enredo fala-nos da alma de um cigano que regressa ao mundo dos vivos para impedir que sua mulher se junte a outro homem. A partitura não inclui melodias tradicionais pré-existentes, mas ostenta ritmos e entoações melódicas andaluzas.

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A música espanhola, à semelhança da de outros países em que as correntes nacionalistas tiveram forte presença, achou-se nos últimos dois séculos entre duas orientações estéticas contrastantes: por um lado, a assimilação das influências predominantes na cultura europeia; por outro, a apropriação artística da tradição, como processo de construção de uma identidade própria. No caso de Falla, esta segunda disposição resultou em manifesto interesse pela música da Andaluzia, materializado na ópera A Vida Breve (1905), nos três noturnos para piano e orquestra Noites nos Jardins de Espanha (1916) e na música dos bailados O Chapéu de Três Bicos (1874) e O Amor Bruxo. Neste último, não há castanholas, palmas, sapateado ou, sequer, o dedilhado da guitarra para obter aquele efeito. Mas apresenta uma orquestração profundamente referenciada nas características mais substantivas da música tradicional espanhola, tais como as melodias modais e as acentuações rítmicas que pontuam o discurso. Tira ainda partido da ancestralidade, sentimento e enérgica vitalidade que emanam do cantar flamenco.

Foi Pastora Imperio, umas das dançarinas mais emblemáticas do flamenco no século passado, quem desafiou Falla para compor a música de um bailado para o qual se propunha cantar e dançar, no papel de Candelas. O enredo baseava-se numa lenda tradicional cigana que o libretista Martinez Sierra ouviu da voz da mãe da artista. Conta o regresso de um espírito ao mundo dos vivos para impedir que nenhum outro homem lhe ocupasse o lugar junto da bela Candelas, sua mulher. O pretendente, Carmelo, via-se aterrorizado pelas aparições do espírito daquele cigano, o qual em tempo de vida teria uma conduta pouco virtuosa. Carmelo engendra um plano. Convence uma amiga de Candelas, a jovem Lucia, a fingir-se apaixonada para seduzir a sinistra figura, de maneira a ganhar o tempo que lhe permitia declarar os seus sentimentos e conseguir de Candelas o «beijo do amor perfeito». O espírito é desta maneira enganado e exorcizado; vencido através do Amor.

A partitura original foi composta para uma pequena formação de câmara, com apenas dez instrumentos: flauta, oboé, trompa, trompete, piano e quinteto de cordas. Mais tarde, seria adaptada pelo próprio compositor para orquestra. Acabaria, assim, por se emancipar do espetáculo dançado, por intermédio da suíte instrumental que se tornou repertório nas salas de concerto. Ainda que se possa privar da voz cantada e de todo o aparato cénico, esta permite, por si só, vislumbrar o imaginário narrativo. Começa por retratar a cólera de um espírito ciumento, uma gruta iluminada pela fogueira e o prenúncio da má sorte de Candelas. A aparição do fantasma «desenha-se» depois nos glissandos das cordas. Atravessa ainda ambientes tão contrastantes como os desvarios frenéticos na «Dança do Terror» e um círculo sereno que rodeia a protagonista. As doze badaladas da meia-noite anunciam um ritual purificador, ao passo que os arabescos da flauta e do oboé abrem caminho ao fogo-fátuo. Tudo termina num clima de ternura e triunfo.

 

Rui Campos Leitão