São inevitáveis as comparações, quando se apresentam lado a lado o Magnificat BWV 243 de Johann Sebastian Bach e o Magnificat Wq 215 de Carl Philipp Emanuel Bach. O exercício torna-se por demais interessante pelo confronto das semelhanças e diferenças entre duas obras oriundas de um período histórico que precipitou tão grandes transformações estilísticas em matéria de música. Mas também porque se trata de dois músicos cuja afinidade não poderia ser mais próxima – pai e filho, mestre e discípulo.
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Nos versículos 46 e seguintes do capítulo primeiro do Evangelho Segundo São Lucas lê-se que poucos dias depois de o Arcanjo Gabriel anunciar a vinda do Messias, Maria viajou até à Judeia para visitar sua prima Isabel, que também esperava o nascimento de um filho, São João Batista. Neste episódio, conhecido como Visitação, Maria dirige-se a Deus engrandecendo a Sua glória e louvando-Lhe a misericórdia para com os mais humildes. Este cântico conhece-se pelo nome de Magnificat e tornou-se parte do Ofício de Vésperas das litúrgias das Igrejas cristãs. Foram, por isso, muitos os compositores que ao longo da História recriaram musicalmente este texto. Na tradição luterana do século XVIII, era costume a congregação cantar em língua alemã. Porém, nas ocasiões mais solenes, o coro e os solistas cantavam em latim. Esta escritura foi, precisamente, uma das poucas cuja versão em latim não foi excluída na Reforma Protestante, tal era a importância da devoção Mariana. Explica-se assim que J. S. e C. P. E. tenham utilizado essa versão.
J. S. compôs o Magnificat BWV 243 em 1723 por ocasião do primeiro Natal que passou ao serviço das igrejas de Leipzig. Originalmente escrita na tonalidade de Mi Bemol Maior, a partitura incluía algumas partes que foram eliminadas na década seguinte pelo próprio compositor, de maneira a adaptá-la a todas as alturas do ano. Transpô-la, ainda, para a tonalidade de Ré Maior, de maneira a acomodar o registo brilhante das trompetes. É uma obra com intervenções curtas mas incisivas do coro, árias e ensembles vocais belíssimos, grandiosidade expressiva e um equilíbrio estrutural apoiado em três «colunas de sustentação»: a Introdução, «Magnificat anima mea», a fuga coral «Fecit potentiam», sensivelmente a meio, e o «Gloria Patri», a terminar. É nestas secções que sobressaem as trompetes e os tímpanos.
Nessa altura, C. P. E., seu segundo filho e aquele que veio a ter maior sucesso enquanto compositor, contava apenas nove anos de idade. Decerto, não terá ficado indiferente diante do esplendor daquela celebração. Passados vinte e seis anos, já em Berlim e ao serviço de Frederico O Grande, compôs o seu próprio Magnificat. Não se conhece ao certo o propósito que o motivou, já que a música sacra não era apanágio da corte calvinista do monarca. Sabemos, porém, da sua insatisfação com a posição que ocupava desde 1738. Talvez se propusesse ao lugar de Mestre de Capela da corte luterana da Princesa Ana Amália da Prússia, em Bayreuth – por sinal, o estilo musical «antigo» era preferência desta irmã do rei. Existe também a hipótese de se destinar ao concurso para o cargo de Mestre de Capela em Leipzig até então ocupado por seu pai. Explicar-se-ia assim a circunstância desta mesma obra ter sido interpretada na Igreja de São Tomé daquela cidade em 1750.
Nenhuma daquelas possibilidades se confirmou. Em 1768, já depois da Guerra dos Sete Anos, C. P. E. mudou-se para Hamburgo para ocupar o posto que a morte de Telemann vagara. Em 1779 recuperou aí este seu Magnificat, juntando então os tímpanos e as trompetes à partitura orquestral. Trata-se da primeira composição de grande fôlego assinada por C. P. E. Não sendo aquela que melhor ilustra a transição para uma nova era, permite vislumbrar esse «Estilo sentimental» que sobrepõe o novo e o antigo na construção das harmonias, nos recortes melódicos, na orquestração, no uso das ornamentações e das intensidades. A sua música revela-se mais simples, mas também mais versátil e menos previsível, por vezes reunindo elementos contrastantes numa mesma secção. A ênfase melódica da ária «Quia fecit mihi magna» para Tenor demonstra, inclusivamente, afinidades com a ópera, quando explora o virtuosismo vocal na palavra «sanctum».
Mas há outros aspetos que distinguem os dois Magnificats. Desde logo, o texto é trabalhado de maneiras distintas. C. P. E. inclui o «Et exultavit» no coro inicial, apesar de não o tratar com a escrita homofónica do início. J. S. prefere dedicar-lhe uma ária para solista. Já em «Quia respexit humilitatem», ambos preferem um registo introspetivo que nos remete para a voz de Maria, por intermédio de uma linha vocal profusamente ornamentada em que as escalas descendentes ilustram a humildade evocada no texto. C. P. E. opta por enfatizar com maior dinâmica os fins de frase, e quando se ouvem as palavras «Ecce enim ex hoc beata» entrega-se numa escrita melismática de grande beleza e afetuosidade, o que contrasta com os desenhos angulares de J. S. no diálogo sublime entre o Soprano e o oboé d’amore. Neste caso, o coro irrompe no final da ária em jeito de cadência, para de seguida o Baixo brilhar sobre o acompanhamento do Baixo Contínuo, em «Quia fecit mihi magna». As diferenças prosseguem em «Et Misericordia». Destaca-se aqui a peça que C. P. E. acrescentou já em Hamburgo, pois havia reutilizado a anterior versão numa outra composição. Em «Fecit potentiam», C. P. E. destacou de início as trompetes, como se nos convidasse a estabelecer uma relação com o início jubilante da respetiva parte da partitura de J. S. Mas tudo prossegue com uma ária para a voz de Baixo em estilo galante. J. S. aproveita o mesmo texto para vincar mais um momento de grandiosidade expressiva. De seguida, a plasticização das palavras é enérgica e jovial em «Deposuit potentes de sede» de J. S., onde a voz de Tenor se desprende numa coloratura crescente em «exaltavit», e com notas prolongadas e agudas em «humiles». C. P. E. corresponde com equivalente dramatismo na relação entre texto e música, muito embora com um dueto para Tenor e Contralto. J. S. prefere apresentar o texto «Esurientes implevit bonis» com uma ária em que a voz de Contralto contrasta com a impetuosidade anterior, numa melodia espirituosa. Em «Suscepit Israel», J. S. propõe um trio para vozes celestiais que deveriam ser cantadas originalmente por crianças. Os oboés destacam-se e as trompetes recordam o coro inicial. Sobre o mesmo texto, C. P. E. propõe uma orquestração muito cuidada sob a voz de Contralto. Sem surpresa, ambas as obras recuperam no final ideias musicais que se escutaram de início. C. P. E. fá-lo, desde logo, quando se ouvem as palavras «Gloria Patri». J. S. mais tarde, em «Sicut erat in principio». Lado a lado, são duas obras de compositores extraordinários que, independentemente das diferenças, coincidem no registo triunfal e numa preocupação obsessiva em ilustrar com música o sentido das palavras.