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Così fan tutte

Così fan tutte tem sido uma das óperas mais controversas de todo o repertório lírico. A seu respeito, uma das questões que vem inquietando muitos melómanos tem sido a pretensa discordância entre a elevação e beleza da música de W. A. Mozart e a pobreza e trivialidade do libreto de Lorenzo Da Ponte. Afinal, Mozart era um humanista! O que justifica que se tenha empenhado durante cerca de dois anos em torno de um enredo que aparenta com uma vulgar representação burlesca sobre o tema da fidelidade conjugal? Adivinha-se algo mais profundo do que isso, portanto.

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O encontro com Da Ponte permitiu a W. A. Mozart aventurar-se no género lírico da ópera buffa, o qual, em registo de comédia, vinha conquistando os teatros de Viena desde a década de 1760. Os dois autores colaboraram, primeiro, nas óperas Le Nozze di Figaro e Don Giovanni, e é quase certo que Così fan tutte não teria sido o último trabalho conjunto, não fosse o compositor ter vivido menos de dois anos após a data da estreia. Esta teve lugar a 26 de janeiro de 1790. Três semanas mais tarde, a morte do Imperador José II interrompeu o ciclo de récitas, que só seria retomado no mês de outubro seguinte, quando Leopoldo II foi coroado e os teatros reabriram as portas. Trata-se aqui de uma ópera que sempre foi recebida com alguma reserva, em parte devido às questões que coloca sobre a moral e o sentimento amoroso. Só nas últimas décadas tem vindo a conquistar o reconhecimento que lhe é merecido.

O enredo começa com uma discussão entre homens acerca da natureza comportamental das mulheres. Dois jovens militares de baixa patente, Ferrando (tenor) e Guglielmo (barítono), estão noivos de Fiordiligi (soprano) e Dorabella (mezzo-soprano), respetivamente. Don Alfonso surge na voz de baixo – na ópera buffa este registo vocal representa quase sempre o papel principal. Este personagem é, por vezes, recreado na figura de um filósofo. Noutras versões, aparece como um cínico manipulador. É ele quem lança a ideia inicial de que, muito embora alguns acreditem que a fidelidade é inseparável da condição feminina, tal não é verdade. Ferrando e Guglielmo sentem-se assim desafiados e, por isso, concordam em apostar que as suas noivas seriam incapazes de os traírem, fosse qual fosse a circunstância. Para o provarem, fingem partir para a guerra. Reaparecem logo de seguida disfarçados, cada um com o malicioso propósito de galantear a noiva do parceiro. Acontece que os sentimentos das jovens vacilam e, a dada altura, ambas se encontram novamente comprometidas, mas desta vez com parceiros trocados. Por fim, os militares revelam as suas verdadeiras identidades e todos acabam por consentir em registo jocoso aquilo que desde início o título da ópera não esconde – que, afinal, «as mulheres são todas iguais».

A partitura contém algumas das páginas mais brilhantes assinadas por Mozart. Ainda assim, tal não impede que desde há mais de dois séculos muitos não hesitem em criticar a trivialidade deste enredo, questionando o facto de um compositor de tal grandeza se ter disposto a trabalhá-lo. Neste sentido, a questão que verdadeiramente se coloca é a relação que se estabelece entre texto e música. E há respostas para todos os gostos. Desde aquelas que entendem que tudo se resume a uma humanização complacente da sátira e da ironia, até às que não escondem o incómodo sentido diante da frivolidade e do cinismo com que são abordados temas tão delicados da filosofia moral. Com efeito, é precisamente na ambiguidade que se instala em tão peculiar abordagem musical do texto que se acha um dos filões mais fascinantes desta ópera. Em muitos momentos, quase parece estarmos na presença de dois libretos, e não um. O primeiro, seria aquele que se inscreve nas palavras de Da Ponte. O segundo, estaria implícito nas «entrelinhas» da pauta musical. Se enveredarmos por esta leitura em que se contempla a multiplicidade de sentidos, Così fan tutte passa a ser muito mais do que um divertidíssimo emaranhado de peripécias e mal-entendidos em que a crítica de costumes se mistura com melodias admiráveis. Abre-se então a porta para uma reflexão profunda sobre temas como a sexualidade humana, ou sobre a eterna dicotomia entre os primados da razão e da emoção.