O período áureo da rádio coincidiu nos EUA com o auge da popularidade das big bands e do swing. Os líderes destas bandas eram verdadeiras estrelas mediáticas, entre elas o clarinetista Artie Shaw. De tal modo que, em 1940, apresentou-se como ator na interpretação de si mesmo no filme Second Chorus (título traduzido em Portugal como O Par Ideal). Em registo de comédia, o elenco incluía ainda Paulette Goddard, Burgess Meredith e Fred Astaire – estes dois últimos nos papéis de trompetistas que disputam entre si um lugar na banda de Shaw. Já perto do final, o próprio Shaw apresenta-se à frente da orquestra para tocar virtuosísticamente. O filme foi um fracasso de bilheteira, mas esses três minutos estiveram na origem do Concerto para Clarinete que conhecemos hoje.
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Nas décadas de 1930 e 1940, houve nos EUA uma geração de músicos que encontrou no swing um trampolim para o sucesso. Os padrões rítmicos do ragtime expandiam-se num padrão mais dançável em que os sopros metais sincopavam sobre a marcação do tempo. Por vezes, tudo se precipitava numa inquietação que apontava caminho ao bebop. Artie Shaw – também clarinetista exímio, à semelhança de Benny Goodman – foi um dos mais destacados protagonistas desse fenómeno. Ouvia-se permanentemente na rádio, vendia muitos discos e, em 1930, foi inclusivamente considerado o «Rei do Swing» pelos leitores da influente revista DownBeat. Não se satisfazia, porém, com a conotação de entretenimento associada ao género. Também rejeitava os preconceitos que distinguiam «alta» e «baixa» cultura; a primeira associada à tradição europeia; ao segunda ao jazz, enquanto síndrome de regressão civilizacional. Nesse sentido, desafiava convenções. É certo que não se compara com figuras como George Gershwin em matéria de aproximação dos dois universos. Mas o seu contributo não foi despiciendo. Em 1936 apresentara no Imperial Theater de Nova Iorque o Interlúdio em Si Bemol, uma peça para clarinete, quarteto de cordas e secção rítmica que juntava a música de câmara clássica com a improvisação jazzística. Tocou Mozart, Debussy e Ravel. Juntava frequentemente uma secção de cordas às suas bandas de jazz, algo incomum naquela época. O Concerto para Clarinete é representativo disso mesmo, também pela repercussão que teve. Foi prontamente editado em disco pela RCA Victor, ainda em 1940, e sequentemente fixado em partitura. Contornada a improvisação, tornou-se, assim, uma peça de repertório tocada por orquestras e clarinetistas em todo o mundo.
Não se trata, ainda assim, de um concerto convencional, do qual se esperaria o confronto ostensivo entre solista e orquestra, três andamentos separados – o primeiro em forma Sonata, o segundo lento e expressivo, o terceiro em forma Rondó – e as tradicionais cadências solísticas. Neste caso, o concerto é tocado num só fôlego, sem interrupções. Mas não deixa de cumprir a sequência tripartida de tempos rápido-lento-rápido. É, precisamente, a variação de tempos que cria os contrastes mais impressivos ao longo da peça. Começa com uma introdução lenta que prepara o ritmo característico do boogie-woogie, sempre coroado pelos sopros metais. Após uma cadência de cariz dramático, a bateria e o clarinete enredam-se num registo de conversação que conduz a nova intervenção da orquestra e ao clímax da obra. A cadência final coloca o solista uma vez mais à prova, com técnicas características do jazz, tais como o vibrato, glissandos, desvios controlados da altura das notas e, sobretudo, o registo agudo do instrumento, uma dificuldade técnica reservada para os clarinetistas mais virtuosos.
Rui Campos Leitão
Imagem: Artie Shaw no filme Second Chorus (1940)
Fonte https://archive.org/details/second_chorus