Mozart chegou a Paris na primavera de 1778 e logo se apercebeu de que o ambiente musical havia mudado muito desde que ali estivera doze anos antes, ainda em criança. As elites da sociedade parisiense continuavam a cultivar formatos de convivência sofisticados. Porém, no que respeita à música, haviam passado a preferir o género concertante, no qual dois ou mais solistas recriam entre si atitudes de conversação e simulam uma rivalidade interpretativa. O Concerto para Flauta e Harpa KV 299 veio ao encontro desse gosto.
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A segunda estadia de Mozart à capital francesa revelou-se funesta, já que a mãe do compositor perdeu a vida apenas algumas semanas depois da chegada. Antes disso, e sempre em busca de um posto de trabalho permanente, o compositor teve a oportunidade de estabelecer diversos contactos que lhe abriram as portas dos salões de uma nobreza que ainda tinha na memória aquela criança prodígio que tocava e improvisava ao piano maravilhosamente. Desta vez, apresentava-se como compositor e impunha-se convencer com diferentes argumentos essa mesma sociedade sempre envolta em códigos de conduta tão vincados.
Procurando ir ao encontro das expectativas locais, logo aceitou a encomenda de uma sinfonia concertante destinada a um concerto público em que tocaram músicos oriundos de Mannheim, entre os quais se achava o flautista Johann Baptist Wendling, que tão bem conhecia. Aceitou ainda escrever outra obra para um combinação instrumental muito pouco usual, um concerto para flauta e harpa. Destinava-se a Adrien Louis de Bonnières, Duque de Guînes, que tocava flauta, e à sua filha mais velha, Marie Louise Philippine, que contava então dezanove anos de idade e tocava harpa. Impunha-se, portanto, a mais pura arte da sedução, um concerto destinado a cativar quer os músicos quer os convidados do Duque, porventura no palácio que este mantinha junto às margens do rio Sena.
Logo após a introdução instrumental, os solistas irrompem com uma disposição afirmativa, bem ao estilo da música orquestral francesa. A apresentação dos temas melódicos é confiada à flauta, enquanto a harpa intervém criteriosamente em momentos de quase total reserva da orquestra. No andamento lento os solistas são deixados praticamente a sós, sem a presença dos sopros, proporcionando momentos de grande intimidade. Por fim, surgem os ritmos vigorosos de uma gavota, um «piscar de olhos» certeiro de um músico que pretendia agradar, e que sabia fazê-lo com distinção.
Rui Campos Leitão
Imagem: «Vista de Paris a partir da Pont neuf» | Pintura de 1763 de Nicolas Jean-Baptiste Raguenet | Fonte: Wikimedia Commons