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American Settings

[Texto do compositor Vasco Mendonça a propósito da obra «American Settings», 2024]

 

            No outono de 2016 estava em Brooklyn a ensaiar um espetáculo, quando ocorreu o infame episódio do ‘hot mic’ de Donald Trump, em que este foi ouvido a insultar mulheres por um microfone que deveria estar desligado. Nesse mesmo dia, um suspiro de alívio percorreu toda a equipa criativa: era impossível Trump sobreviver politicamente a este escândalo.

            Obviamente, não foi esse o caso. Tentando perceber o que acontecera nessas eleições, alimentei nos anos seguintes um consumo compulsivo de informação, a que correspondia uma crescente apreensão pessoal pelo futuro, pelas pessoas, pelo planeta – apenas para chegar à conclusão de que a resposta era demasiado complexa para me tranquilizar.

            A descoberta da poesia de Terrance Hayes e Tracy K. Smith, quando procurava uma forma de lidar com esta inquietação no meu trabalho, foi uma revelação: aqui estavam dois artistas que, no olho do furacão, de alguma forma tinham criado um equilíbrio admirável entre o corrente e o eterno, misturando linguagens e escalas num universo dinâmico em que nada parecia ficar de fora. Vernáculo e filosofia, desejo carnal e metalinguagem, tudo era combinado numa espiral vertiginosa e comovente de palavras que eram tanto significado como música. E, pacificado pela descoberta destes poemas singulares, compus em 2022, num gesto catártico, um ciclo de canções para voz e percussão (agora transpostas para orquestra) que são uma espécie de folclore imaginário da América que existe na minha cabeça: uma espiral vertiginosa de excesso e transcendência que me fascina e aterroriza em doses idênticas. Idílio e apocalipse sem nada no meio.

            Nas duas canções de contemplação, a voz vai-se lentamente inscrevendo na paisagem orquestral, da mesma forma que o narrador nos desvenda o mundo que o rodeia – interior e abstrato em Wind in a Box, a costa da Ilha das Flores em Flores Woman. Nas duas canções de interpelação, a orquestra é como uma segunda pele da voz (áspera e restritiva no soneto dedicado a Trump em The Umpteenth Thump), elástica e orgânica como a tensão íntima em Semi-splendid.