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A Sagração da Primavera

Se recuarmos no tempo, até 1913, deparamo-nos com um panorama musical efervescente que incorporava novas formas de questionar e entender o Mundo. Nesse sentido, é emblemático o exemplo da partitura musical que Stravinsky escreveu para o bailado A Sagração da Primavera. Assumia uma postura despojada e desafiante, projetando-se muito além do entretenimento ou da afetação sentimental.

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A estreia d’A Sagração da Primavera teve lugar no dia 29 de maio de 1913, em Paris. Mas a origem da sua criação remonta a três anos antes dessa data, altura em que Igor Stravinsky trabalhava n’O Pássaro de Fogo, a sua primeira colaboração com os Ballets Russes. A do novo projeto inspirava-se num cerimonial religioso em que uma mulher dança intensamente… até cair morta. Tal «imagem» acabou por resultar na história da imolação de uma jovem que é sacrificada como oferenda a uma entidade divina, conforme um ritual primitivo de primavera invocativo de boas colheitas. Entretanto, o músico ocupou-se de escrever uma peça para piano e orquestra – essa mesma que resultou num outro bailado, Petrushka. Só no verão de 1911 começou, finalmente, a trabalhar nas suas «Imagens da Rússia Pagã», ou seja, a A Sagração da Primavera.

Curiosamente, foi neste mesmo ano que visitou pela única vez o Festival de Bayreuth. Para si, a excessiva devoção que rodeava a figura de Richard Wagner era prejudicial à percepção da obra artística. Entendia que os espetáculos deveriam ser aceites ou rejeitados pelo público sem quaisquer preconceitos estéticos e prescindindo de ideias acessórias que substituíssem ou determinassem a fruição musical. Há pouco mais de um século, essa era uma postura francamente despojada e, por isso mesmo, provocadora.

A Sagração também o era. À repetição obstinada de acordes maciços e aos ritmos sincopados e imprevisíveis, juntava uma intensidade física e emocional sem precedentes. Para lá disso, contrariava as dramaturgias convencionais da dança, aproximando-se de temáticas de pendor manifestamente abstrato. Estes fatores, à semelhança de outros de índole especificamente coreográfica, provocaram o rotundo fracasso da primeira apresentação, com direito a sarcasmos insultuosos e até a uma expressiva vaia. Acontece que aquele estilo musical nunca fora antes escutado e, por isso, não desafiava somente os ouvintes. Segundo o próprio compositor, o mesmo acontecia com os intérpretes, pois tratava-se de uma partitura extremamente exigente quer em termos técnicos quer expressivos. Décadas mais tarde, o compositor descreveu nas suas memórias a hostilidade com que a partitura tinha sido recebida. Para o fazer, contou o seguinte episódio. Quando terminou a Primeira Grande Guerra, foi recuperar os manuscritos originais para fazer uma revisão. Para seu espanto, reparou então que alguém tinha acrescentado a lápis, na parte de violino, a sílaba «Mas» ao nome «Sacre». Ficava assim: «Le (Mas)sacre de Printemps». Na época, seria este um dos comentários jocosos mais esclarecedores acerca da aversão que muitos sentiam por uma obra artística que, afinal, hoje o mundo todo celebra sem reservas.

Rui Campos Leitão