Este site utiliza cookies. Ao navegar no site estará a consentir a sua utilização de acordo com a nossa Política de cookies.

concordo

A Décima de Beethoven

A Sinfonia N.º 10 de Beethoven foi durante muitos anos uma obra mítica. Apresentava-se como uma criação que o compositor teria imaginado, mas que nunca chegou a passar para o papel. Nas últimas décadas houve várias tentativas de reconstrução a partir de esboços existentes. Uma das mais notáveis apresentou resultados na Alemanha em 2021, em resultado de dois anos de pesquisa com recurso a tecnologias de inteligência artificial. Mas a versão mais reconhecida foi assinada em 1988 por Barry Cooper, um dos primeiros musicólogos a debruçar-se sobre o assunto.

**

No final do século passado foram reunidos vários manuscritos cuja análise confirmou serem esboços de uma sinfonia de Beethoven que nunca chegou a ser completada. Ainda que de maneira fragmentada e truncada, vislumbra-se aí exercícios preparatórios para aquela que teria sido sequela da Sinfonia Coral. Poderia, inclusivamente, ter sido publicada antes, já que a encomenda da Royal Philharmonic Society de Londres incluía duas sinfonias, e não uma. Aqueles documentos são datados da primeira metade da década de 1820, precisamente na mesma altura em que foi composta a derradeira sinfonia que nos chegou (o músico só morreu em 1827).

A tentação de completar trabalhos deixados inacabados por grandes compositores é facilmente compreensível e tem antecedentes bastante bem sucedidos, tais como o Requiem de Mozart, a Incompleta de Schubert ou a Sinfonia N.º 10 de Mahler. Neste caso específico, há que lembrar que a Sinfonia N.º 9 é um marco na História da Música que teve tremendo impacto em praticamente toda a produção sinfónica dos últimos dois séculos. Quem não gostaria de saber que passos o músico de Bona daria em diante? A reconstrução a partir destes materiais será sempre um ensaio também ele inconclusivo, mas perfeitamente atendível se tivermos em conta o profundo conhecimento que hoje existe acerca das técnicas utilizadas pelo músico e do seu estilo de escrita. Há um testemunho que relata uma ocasião informal em que Beethoven terá tocado o primeiro andamento da sinfonia ao piano. Assim, uma vez comprovada a autenticidade dos documentos, é incontornável a curiosidade de espreitar como soaria. Dos quatro andamentos, só o primeiro permite conjecturar uma versão minimamente aproximada daquela que poderia ser a versão final, ainda que faltem bastantes indicações a respeito da orquestração, entre outros aspetos. Chegaram-nos, todavia, todos os materiais motívicos, ou seja, as ideias melódicas sobres as quais tudo se desenrola.

Espera-nos assim uma introdução lenta seguida por um Allegro. O diálogo estabelece-se como uma possibilidade, e não com a voz categórica da verosimilhança histórica. Assumimos uma escuta especulativa na vontade de adivinhar como seria algo que nunca chegou a acontecer.

 

Rui Campos Leitão