Este site utiliza cookies. Ao navegar no site estará a consentir a sua utilização de acordo com a nossa Política de cookies.

concordo

Sinfonia Scheherazade

O orientalismo foi uma moda que atravessou a Europa no final do século XIX. Ecoou na literatura, no vestuário, na pintura… e também na música. Tal exotismo despertou então o interesse de muitos compositores. Foi o caso daqueles que integravam a «nova escola russa», entre eles Rimsky-Korsakov. Os quatro poemas sinfónicos que constituem a sua Scheherazade são disso exemplo. Estreados em 1888, inspiram-se livremente n’«As Mil e Uma Noites». Em conjunto, resultam numa verdadeira sinfonia.

**

Em finais do século XIX era notório o desgaste da música dita «pura», aquela pretensamente desvinculada de associações que se estendam para lá da partitura. Por isso, os compositores buscavam imaginários fictícios ou referências culturais de um povo para explorarem mais livremente os recursos do dispositivo orquestral. Assim acontece em Scheherazade de Rimsky-Korsakov, uma obra que prossegue a tradição das sinfonias dramáticas de Berlioz. Trata-se, portanto, de música programática, no sentido em que estabelece um diálogo explícito com uma obra literária, «As mil e uma noites», uma coleção de contos tradicionais da região do Médio Oriente e do sul da Ásia compilada no século IX em língua árabe. Foi traduzida para francês no início do século XVIII e tornou-se num clássico. O fio condutor de toda a coleção é a narração de Scheherazade, a mulher de Schahriar, sultão da Pérsia.

Inicialmente, a composição foi pensada como uma sinfonia, pelo que os andamentos estiveram para se intitular de maneira diferente: Prelúdio, Balada, Adágio e Finale. Rimsky-Korsakov foi posteriormente persuadido pelo também compositor Anatoli Liadov para discriminar nos títulos as partes do livro em que se inspirara, muito embora passados alguns anos tenha preferido retirar essas referências a fim de deixar maior liberdade ao ouvinte. É certo que aqueles títulos continuam hoje a aparecer em praticamente todas as edições, mas Scheherazade não pode ser entendida como uma descrição literal dos textos. Rimsky-Korsakov adaptou livremente as narrativas. Preocupou-se, sobretudo, em manter um ambiente fantasioso em que o exotismo é recurso de sedução, maneira de proporcionar uma viagem sonora num mundo idealizado, fantasia que se estende da bestialidade ao erotismo em paisagens distantes. Torna-se difícil, portanto, identificar correspondências lineares entre ideias musicais e personagens ou ações porque Rimsky-Korsakov não respeitou um planeamento dramatúrgico. Em vez disso, evocou episódios dispersos, como um mosaico que se dilui numa escrita eminentemente sinfónica – para lá, portanto, da mera ilustração musical.

Mas existem algumas pistas. Os uníssonos iniciais, em jeito de fanfarra, reaparecem por diversas vezes ao longo da obra e retratam o sultão, essa tal figura sinistra e ameaçadora que por ciúmes matava todas as mulheres após a noite de núpcias; excepto aquela que salvou a própria vida contando mil e uma histórias, em outras tantas noites, despertando sempre curiosidade em ouvir o conto seguinte. As curtas introduções e o interlúdio para violino solo personificam a própria Scheherazade. Já a Barcarola que se ouve no primeiro andamento remete para as vagas que embalam Sinbad, o valente marinheiro que singrou os sete mares do mundo. Curiosamente, esta é uma história que não faria parte do conjunto dos manuscritos originais das Mil e uma noites. Terá sido acrescentada na tradução francesa. O segundo andamento abre com o violino de Scheherazade, o qual introduz uma história do príncipe Kalender, muita embora não saibamos ao certo de que história se trata, já que existem várias referências a Kalender no livro; talvez a de um príncipe que se veste de mendigo e se sujeita a privações em busca da sabedoria. O terceiro andamento é o momento romântico da obra, em torno de um amor principesco. Os sentimentos do príncipe são ilustrados na sonoridade voluptuosa dos violinos. Os da princesa alternam sucessivas vezes na forma de uma dança. Como seria de esperar de uma sinfonia, o último andamento justapõe com exuberância as ideias apresentadas ao longo da sinfonia. Revisita o tal uníssono ameaçador e o violino de Scheherazade. Precipitam-se os cenários, como se traduzisse o perigo eminente da impaciência do Sultão.

Artigos Relacionados