Este site utiliza cookies. Ao navegar no site estará a consentir a sua utilização de acordo com a nossa Política de cookies.

concordo

Sinfonia Fantástica

A Sinfonia Fantástica de Hector Berlioz é uma fantasia autobiográfica que recria livremente as dores e os anseios de um amor não correspondido. São «Episódios da Vida de um Artista», título atribuído pelo próprio compositor quando tomou a iniciativa de dar a conhecer publicamente o guião das ideias escondidas por detrás da partitura. Para mergulhar nesta obra, a segunda chave mestra está na atenção dada à orquestração. Os timbres dos instrumentos articulam-se meticulosamente com a expressão poética.

**

Em 1827, então com 24 anos de idade, Berlioz assistiu à representação de uma companhia inglesa da peça teatral Hamlet, de William Shakespeare. Nessa ocasião, despertaram em si duas paixões: uma por Shakespeare, outra por Harriet Smithson, a atriz que interpretava o papel de Ofélia e com quem casou seis anos mais tarde. Terá sido Harriet a fonte de inspiração desta sinfonia. Dominado pela paixão, o músico escreveu-lhe cartas intensas. Porém, o seu desejo foi ignorado. De espírito obcecado, caiu em depressão durante cerca de um ano. Não dormia, desmaiava, vagueava… ponderou o suicídio. Até que logrou canalizar a energia desse imenso tumulto para a criação musical. Era tal o fulgor das emoções que compôs os cinco andamentos em menos de dois meses.

No século XIX discutia-se muito a autonomia da música em relação às narrativas e aos ideais. E mesmo que, em diversas ocasiões, Berlioz tenha hesitado em partilhar o programa com o público, é hoje em dia irresistível ouvirmos esta sinfonia sem tomá-lo em consideração. Deste modo, é suposto a música retratar histórias e cenários, neste caso a fantasia de um artista caído em desgraça por desgosto amoroso. O primeiro andamento retrata a perturbação sentida ao deparar-se com a mulher dos seus sonhos. A melancolia e a ternura alternam com impulsos delirantes de alegria, paixão, raiva e ciúme. Termina em lágrimas e oração. É tal a paixão que não consegue sequer recordar o rosto da amada após o encontro. Em vez disso, depara-se com a obsessão por uma melodia que espelha o seu encanto. É essa a «idée fixe» que reaparecerá insistentemente ao longo de toda obra. Já o segundo andamento evoca um baile imaginário em que o artista se abandona em distrações ébrias que o levam a deambular entre a vertigem da valsa e contemplação idílicas. No terceiro, a natureza serve de metáfora para a comoção amorosa. Numa noite bucólica, escuta-se o vento nas árvores, súplicas tímidas, autocomiseração e o conforto da esperança alimentada pelo desejo. Mas a acalmia é brutalmente interrompida no andamento seguinte. O artista encara com desespero o drama de um amor não correspondido e tenta envenenar-se com ópio. Porém, em vez de morrer, sofre pesadelos aterradores. Esta Marcha para o Suplício foi recuperada de uma ópera composta por Berlioz em 1826, mas que permaneceu inacabada, Les Francs-Juges. Sonha ter assassinado a mulher que amava, ter sido condenado à morte e conduzido ao cadafalso para ser executado na guilhotina. Ritmos e acordes contundentes antecipam um derradeiro lamento… e o acorde final. No último andamento, a procissão fúnebre é acompanhada por gritos distantes, gargalhadas e sinos de igreja. O protagonista assiste à ressurreição da sua amada transfigurada numa criatura horrível que dança lascivamente com feiticeiros e demónios numa orgia de Sabbat. A tal melodia reaparece, agora com contornos triviais e grotescos.

Inicialmente, Berlioz pensou contratar 130 músicos. Nunca antes uma orquestra se apresentara com tão grande número de efetivos. Mas logo percebeu que as dimensões do palco não o permitiam. De qualquer modo, a orquestração é grandiosa e principal responsável por conduzir o interesse do ouvinte. Os timbres instrumentais articulam-se com o enredo dramatúrgico, sendo possível identificar relações evidentes entre ambos. Nesse sentido, era um verdadeiro drama musical que convocava uma escuta despojada e tremendamente inovadora à consideração das expectativas do público daquela época diante de uma obra sinfónica. Não havia cantores nem dispositivos teatrais. A sinfonia e a ópera fundiam-se numa orquestração tecnicamente exímia e criativamente extraordinária.

A estreia aconteceu em dezembro de 1830 no Conservatório Nacional Superior de Música e Dança de Paris. Com Berlioz na condição de maestro à frente da orquestra, e Harriet na audiência, esta sinfonia tornou-se numa das mais espetaculares e bem sucedidas declarações de amor da História da Música. Seguiu-se o casamento, muito embora não tão feliz quanto ambos desejaram.

 

Rui Campos Leitão

 

Imagem: Harriet Smithson em 1827 | Retrato anónimo | Fonte: Wikimedia Commons