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Sinfonia Clássica

O que terá motivado um jovem compositor russo para compor uma sinfonia «à maneira de Haydn» em plena revolução bolchevique? Ainda hoje, ao ouvir a Sinfonia N.º 1 de Prokofiev, e ainda que ignorando questões como esta, percebe-se uma qualquer estranheza a pairar por entre melodias lindíssimas, efeitos orquestrais cristalinos e uma construção formal irrepreensível. Está tudo no sítio… e isso inquieta.

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Sergei Prokofiev é um compositor cuja figura logo associamos a uma aura de irreverência, a um tipo de personalidade que, no domínio das artes, surge normalmente comprometida com a busca permanente de novas sonoridades. Em virtude disso, poderá parecer um gigante retrocesso que em 1916, com apenas 25 anos de idade, tenha escrito uma obra moldada num formato sinfónico que se instituiu na segunda metade do século XVIII. E mais estranho se torna quando sabemos que, já antes, rompera com a expectativa romântica conservadora e decadente, como na música do bailado Ala e Lolli que, sendo primeiramente destinada à companhia de Diaghilev, acabou estreada num conjunto de peças orquestrais, a Suíte Cita.

Decorria então a Primeira Grande Guerra. Prokofiev mantinha-se relativamente alheado de causas políticas, mas estava atento ao que o rodeava. Entre os simpatizantes da Revolução começavam a surgir opiniões que qualificavam a sua música de «bárbara». Porventura em resposta, regressou ao conservatório de São Petersburgo e compôs uma sinfonia «como Haydn o teria feito se fosse vivo». A 21 de abril de 1918 fê-la estrear diante de uma assistência onde se achava um importante dirigente do Partido Comunista que prontamente identificou um espírito verdadeiramente revolucionário nesta obra. Poucos dias mais tarde, Prokofiev manifestou-lhe a intenção de viajar até aos E.U.A. O visto foi concedido.

Este episódio demonstra o quanto a estética neoclássica soava inovadora, sem sacrifício da fácil apreensão. Assentava no pressuposto de que o recurso a modelos e estilos do passado era inteiramente válido. No caso da Sinfonia Clássica, que foi uma das primeiras manifestações desta corrente, procurava ser fiel aos princípios técnicos de uma sinfonia do período clássico, mas sem o sacrifício da integridade criativa e da expressão própria do autor. O mais difícil era encontrar um equilíbrio entre o pastiche e a caricatura, e Prokofiev superou o desafio com distinção. Sem reverência excessiva nem sarcasmo, porventura com respeitosa ironia, resultou uma partitura onde tudo é representação, e tudo é essencial.

 

Rui Campos Leitão