Este site utiliza cookies. Ao navegar no site estará a consentir a sua utilização de acordo com a nossa Política de cookies.

concordo

Rhapsody in Blue

Rapsódia Americana – foi este o título provisório de Rhapsody in Blue, a obra concertante para piano e orquestra que em 1924 abriu novos caminhos à carreira de George Gershwin e, bem mais importante, também à música dos E.U.A. Numa época em que o Novo Mundo buscava uma identidade cultural própria, à semelhança do que ocorreu por toda a Europa, a sonoridade do Jazz impôs-se como a mais genuína expressão musical, alastrando-se às rádios, aos discos e às salas de concertos. Em forma de Rapsódia, e por entre a azáfama dos teatros da Broadway, Gershwin compôs este precioso «caleidoscópio musical da América».

**

O título Rhapsody in Blue não se traduz facilmente, pois faz uso de uma palavra com contornos ambíguos no contexto específico do Jazz. O sentido literal da palavra «Blue» (Azul) dá nome à disposição afetiva que se distingue nesse género musical que floresceu há pouco mais de um século no seio das comunidades negras dos E.U.A. Trata-se de um sentimento melancólico que nenhuma outra palavra exprime de maneira convincente – assim como a palavra Fado nos ajuda a apresentar a canção urbana que emergiu nos convívios boémios da Lisboa oitocentista. O termo também se aplica às «Notas Blues», as notas que se desviam ligeiramente da escala diatónica própria da tradição musical clássica europeia – uma nuance que contribui para a sua singularidade. Não por acaso, todos os temas melódicos que se destacam em Rhapsody in Blue distendem-se na peculiaridade desta escala.

Conhecer a motivação que trouxe tal sonoridade à Aeolian Hall, uma sala de concertos vocacionada para o repertório clássico, revela-se fundamental para perceber os contornos da obra. A estreia decorreu em fevereiro de 1924 naquela sala nova-iorquina onde, para lá de Rachmaninov e Prokofiev, também se ouvia a Palais Royal Orchestra, a orquestra de Paul Whiteman que tanto contribuiu para a divulgação do Jazz junto da elite branca. Whiteman procurava conferir ao género um estatuto de respeitabilidade, já que permanecia associado ao estigma de comunidades desfavorecidas e discriminadas. No sentido de demonstrar que esta poderia ser uma prática artística «séria» e sofisticada, promoveu um concerto didático que se propunha fundir os dois universos. O programa anunciava a estreia de um concerto para piano e orquestra de George Gershwin.

Gershwin já era conhecido por difundir o Jazz na Broadway, mas não tinha experiência em escrever para orquestra. A precipitação do convite obrigou-o a compor em apenas três semanas uma partitura para dois pianos, confiando algumas partes solistas à improvisação do momento. O orquestração foi realizada por Ferde Grofé, o arranjador habitual da Palais Royal Orchestra, na ocasião reforçada com uma secção de violinos – mais tarde, o próprio Grofé fez a adaptação para orquestra sinfónica. Detalhe curioso: o famoso glissando inicial que se ouve no clarinete deve-se a um momento de improvisação do clarinetista Ross Gorman no decorrer de um ensaio.

Tratando-se de uma Rapsódia, a sua estrutura distingue-se de um concerto clássico por ter um único andamento composto por uma sequência episódica de ideias contrastantes, o que mereceu o reparo de personalidades tão ilustres como Leonard Bernstein. A natureza algo irregular da obra dá azo à improvisação e a rasgos expressivos exuberantes e inesperados, entre a abundância dos ritmos do Ragtime. Contrariava assim a ideia de que o Jazz era uma música exclusivamente dançável, jogando com os contratempos e os rubatos. Sucedem-se assim temas melódicos de grande beleza que prendem a atenção do ouvinte, um dos quais com o lirismo justo para o clímax da obra. Construía-se a ideia de uma música genuinamente americana, obtendo um sucesso que tornaria possível a Gershwin compor mais tarde obras como o Concerto em Fá Maior, Um Americano em Paris e Porgy and Bess.

 

Rui Campos Leitão

 

Imagem: George Gershwin em 1935 | Fonte: Wikimedia Commons