A sinfonia em que Franz Schubert trabalhava no últimos meses de vida não chegou a ser concluída. Dela chegou-nos um importante conjunto de apontamentos – três andamentos escritos para piano e alguns esboços da orquestração. Tem, por isso, despertado a curiosidade de muitos compositores e musicólogos. Para lá do interesse em adivinhar os propósitos que orientavam o compositor no final da vida, é muito grande a tentação de a «terminar». Em 1990, Luciano Berio resistiu e optou por uma abordagem surpreendente em Rendering (Restauro).
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A relação entre o passado e o presente sempre inquietou os espíritos criativos, muito em particular aqueles que despontaram na corrente pós-moderna das décadas de 1960 e 1970. A música de séculos anteriores encarava-se então como pretexto, mas também como substância. Questionavam-se convenções informalmente instituídas para ensaiar práticas artísticas projetadas em referências múltiplas – além da obra, portanto. A originalidade deu lugar ao ecletismo estilístico, e o músico italiano era um dos mais destacados protagonistas dessa tendência. Demonstrava fascínio pela música do passado, mas recusava o propósito de completar obras inacabadas. Em Rendering preferiu enredá-las com sonoridades contrastantes. Abria janelas para o passado, mas questionava o presente.
Cerca de dois terços da obra pertencem a Schubert, pelo que se trata de uma partitura fragmentada, desintegrada. Não é um trabalho de reconstituição. Porventura, evoca um sentimento de perda. Com a intervenção de Berio, aquela que seria a décima sinfonia assume uma quase-existência. Sem disfarçar vazios – antes pelo contrário – respeitando um «espaço de ninguém», as ideias musicais do compositor austríaco são lembradas e colocadas em diálogo com novas sonoridades, estas últimas em jeito de murmúrio, vincadas pelo timbre misterioso da celesta.
Assim, somos convidados para contemplar uma partitura incompleta que nos chegou. Mas também, e sobretudo, para refletir sobre tanta música que nunca chegaremos a ouvir.
Rui Campos Leitão