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Pulcinella de Stravinsky

O bailado Pulcinella foi estreado na Ópera de Paris em 1920, com cenários de Pablo Picasso e coreografia de Léonide Massine. A música, assinada por Igor Stravinsky, popularizou-se através da suíte orquestral que o próprio fez publicar dois anos mais tarde, excluindo as partes cantadas. Só mais raramente temos a oportunidade de ouvir a suíte completa, ou seja, a versão original da partitura.

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O enredo do bailado Pulcinella (Polichinelo) recupera um manuscrito de 1700 que contém diversas histórias sobre aquela personagem, a adaptação napolitana da célebre personagem masculina da Commedia dell’Arte Arlequim. Trata-se de uma figura-tipo de caráter burlesco, corcunda, com uma grande barriga, de nariz recurvado. Tudo acontece, portanto, em torno das caricatas aventuras amorosas desse homem do povo, simultaneamente mandrião e cheio de astúcia. Há duas jovens de uma aldeia que não disfarçam a atração que por ele sentem. Isso deixa os respetivos noivos – assim como Pimpinella, a namorada de Pulcinella – perdidos de ciúmes. Os prometidos acabam por esfaquear Pulcinella, e colocam-se em fuga. O corpo é encontrado pelos aldeões. Porém, a dada altura, acontece o inimaginável: o morto ressuscita. Na verdade, Pulcinella apenas se fizera passar por morto. Trocara de papéis com o seu amigo Fourbo para todos surpreender quando aparece disfarçado de mágico. Para completar a farsa, também os noivos Florindo e Coviello se tinham disfarçado, mas de Pulcinella, para impressionarem Prudenza e Rosetta. Temos, portanto, a dado momento, quatro Pulcinellas em cena. No final, tudo se esclarece e termina em bem, cada um casando com «o seu».

Os Ballets Russes já tinham ensaiado anteriormente a combinação da música barroca italiana com a Commedia dell’Arte numa peça de Carlo Goldoni com música de Domenico Scarlatti. Atendendo ao sucesso, Serguei Diaghilev convidou Stravinsky para compor Pulcinella e, para o convencer, entregou-lhe uma série de partituras que poderiam ser orquestradas. Tratava-se de música de câmara, música para instrumentos de tecla e árias de ópera que, à data, se pensava serem da autoria de Giovanni Battista Pergolesi (1710-1736). Mais recentemente, estudos musicológicos têm vindo a revelar os verdadeiros autores. Com efeito, nove dos excertos selecionados são partes vocais de óperas cómicas de Pergolesi. Mas também há música dos compositores Domenico Gallo (1730-ca.1768), Carlo Monza (1735-1801), Alessandro Parisotti (1853-1913) e do Conde de Wassenaer (1692-1766).

Com tudo isto, um dos aspetos mais fascinantes desta criação é o modo como Stravinsky sobrepôs música do século XVIII e a sua própria identidade estilística. Baseou-se naquelas obras para produzir a sucessão de peças que se ouve ininterruptamente durante o bailado – um ato com pouco mais de meia hora de duração. Na sua maior parte, preservou as melodias e as linhas de baixo. Acrescentou, todavia, o seu cunho, com dissonâncias que «perturbam» a harmonia, subtis alterações rítmicas, repetições obstinadas de fragmentos e, sobretudo, técnicas de orquestração inconfundíveis. Nesta última vertente, juntou uma pequena orquestra às vozes de soprano, tenor e baixo, partes vocais que não intervêm diretamente no enredo nem estão associadas a qualquer uma das suas personagens.

Pulcinella vinca um momento charneira da carreira do compositor russo, designadamente por ter revelado o seu fascínio pela música «antiga». Daí em diante, passou a enquadrar grande parte das suas criações numa estética neoclássica.

 

Rui Campos Leitão

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