O trilo é um ornamento melódico que resulta da alternância veloz entre uma nota principal – aquela que aparece efetivamente escrita na partitura – e uma segunda nota que, relativamente próxima, lhe acrescenta um comportamento desviante que sempre aponta a uma resolução tonal. Muito embora seja utilizado em diferentes repertórios, é particularmente característico da música da primeira metade século XVIII. A mais célebre sequência de trilos foi assinada por Giuseppe Tartini. Encontra-se no terceiro andamento de uma Sonata para Violino composta naquele período. Chamam-lhe «Trilo do Diabo» e está ligado a um sonho do próprio compositor.
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A história do sonho de Giuseppe Tartini (1692-1770) chegou-nos por intermédio do astrónomo francês Joseph-Jérome De Lalande, que conheceu pessoalmente o famoso violinista numa visita que fez à cidade de Pádua em meados da década de 1760. Publicou passado pouco tempo um livro intitulado Voyage d’un Français en Italie onde descreveu o que lhe foi pretensamente contado na primeira pessoa. Certa noite, Tartini sonhou ter feito um pacto com o diabo. Nesse sonho, prometeu servir o mafarrico e emprestou-lhe o violino para saber como tocava. Para seu espanto, ouviu uma melodia extraordinariamente bela. Assim que despertou, apressou-se a pegar no violino e tentou reproduzir aquela música. Mas sem sucesso. Ainda assim, compôs nesse momento a obra que melhor lhe conhecemos hoje, a «Sonata do Diabo». Este relato remete-nos para 1713, quando o jovem músico passou pelo mosteiro de Assisi, no coração da península. Porém, entre outros aspetos, a complexidade da ornamentação e a depuração estilística da partitura indiciam que tenha sido sujeita a múltiplas revisões ao longo da vida, acomodando as crescentes qualidades de um dos violinistas mais prestigiados do seu tempo, a par de Vivaldi. Foram muitos os jovens violinistas que foram até Pádua para estudar consigo, o que também ajuda a entender porque esta peça foi difundida por toda a Europa em tal medida que, em 1756, Leopold Mozart deu como exemplo o famoso trilo duplo do 3.º andamento no seu tratado sobre a técnica de tocar violino. Ainda assim, a mais antiga versão que se conhece só foi impressa em Paris em 1798, numa compilação de repertório para este instrumento.
Há dois aspetos que ressaltam deste exemplo paradigmático em que uma narrativa se tornou substantiva da própria obra musical. A primeira resulta da associação de uma presença diabólica à construção do mito do instrumentista virtuoso, enquanto alguém capaz de transcender as faculdades humanas por intermédio de condutas transgressoras. Nesse sentido, as competências prodigiosas associadas à velocidade e à precisão técnica alimentam o culto de uma espetacularidade que se assemelha, em parte, à magia e à acrobacia. Deste modo, Tartini precedeu a idealização do génio romântico coroada pela figura de Niccolò Paganini. Já o segundo aspeto, enquadra a fronteira difusa que tantas vezes se traça no domínio das artes entre a imaginação e a realidade, entre o sonho e a concretude da vida. Seria maravilhoso colhermos na memória dos nossos sonhos ensinamentos e revelações transcendentais. Seríamos então todos artistas. Mas já em 1901 o filósofo Henri Bergson contrariou essa ilusão quando deu como exemplo esta mesma «Sonata do Diabo» para dizer que a imaginação do sonhador, quando este desperta, acrescenta muito ao sonho, transforma-o retroativamente, preenche lacunas que podem ser enormes.
Rui Campos Leitão