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O Revivalismo da Serenata

A palavra Serenata lembra-nos cenários rústicos e trovas de amor. Porém, já desde finais do século XVIII, o termo estendeu-se à música instrumental, com peças curtas vocacionadas para ocasiões de entretenimento e tocadas por pequenos agrupamentos – na maioria dos casos por uma só família de instrumentos, fossem sopros ou cordas. Com o avançar do tempo, o género assumiu maior alcance artístico. É o caso da Serenata Op. 16 de Brahms (1858), um conjunto de cinco pequenas peças que abre caminho à grandiosidade das quatro sinfonias. Também da Serenata Op. 44 de Dvořák (1878), a qual acrescenta às reminiscências mozartianas a inconfundível sonoridade da música tradicional da região da Boémia. Ambas recuperam um género que fora praticado pelos clássicos de Viena e que caíra entretanto em desuso.

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Os géneros musicais não são formas rígidas. Ao adoptarem-nos, os compositores não estão obrigados a respeitar determinações estritas – afinal, trata-se de criação artística, e não da linha de montagem de uma indústria fabril. Por isso, uma Sinfonia datada do século XVII em nada se parece com uma Sinfonia composta na segunda metade do século XIX. O mesmo acontece com as Serenatas: no século XVI eram canções de amor, mas no período de Haydn e Mozart poderiam também ser peças instrumentais. Já no século XIX tanto se podia chamar Serenata a um número cantado numa ópera como a composições de música de câmara ou orquestrais. É neste último âmbito que se inscrevem as Serenatas Op. 16 e Op. 44 de Brahms e de Dvořák, respetivamente.

 

Serenata N.º 2 de Brahms

O período entre 1873 e 1887 sobressai na carreira de Johannes Brahms. Foi quando compôs o Concerto para Piano N.º 2, o Concerto para Violino, as aberturas de concerto, as Variações Sobre um Tema de Haydn e, sobretudo, as quatro sinfonias. As duas Serenatas, a Op. 11 e a Op. 16, são anteriores e têm merecido bastante menos atenção. Alguns consideram tratar-se de meros exercícios preparatórios das sinfonias, por terem sido a sua primeira incursão em matéria de música orquestral. Mas essa é uma leitura bastante redutora. Foram ambas compostas entre 1857 e 1859, em Detmold, altura em que passava os períodos de outono ao serviço de Leopoldo III de Lippe com as funções de maestro de um coro amador, de professor de piano da princesa e de pianista nos concertos da corte. Tinha cerca de 25 anos de idade e enfrentava uma nova fase da sua vida. Ultrapassada a «pesada» convivência com os Schumann, procurava a sua independência. Tinha também oportunidade de estudar profundamente as partituras de Haydn, Mozart e Beethoven. Foram, precisamente, as Serenatas e os Divertimentos de Mozart que o inspiraram para compor algo semelhante para os músicos que tinha à sua disposição em Detmold. Assim, no verão de 1858 começou a compor a Serenata N.º 2, numa altura em que também se encontrava apaixonado pela soprano Agathe von Siebold. A relação foi efémera e só o primeiro andamento foi escrito antes de ter terminado. Por seu turno, a partitura seria completada em novembro do ano seguinte e estreada publicamente em fevereiro de 1860. A maneira como se estrutura mostra bem que procurava estabelecer «diálogo» com o classicismo vienense, referenciando-se particularmente na Serenata N.º 10 de Mozart, KV 361. Mas faz também alusão a Beethoven, com o tema inicial do Scherzo, que não disfarça semelhanças com o tema do último andamento da Sinfonia N.º 8.

Originalmente, a Serenata N.º 2 foi escrita para instrumentos de sopro e para as cordas mais graves da orquestra; portanto, sem trompetes, tímpanos e violinos, parecendo-se com uma pequena orquestra de sopros. Mais tarde, o próprio fez uma transcrição para Piano a 4 mãos e uma revisão da versão orquestral. Desde 2001, pode também ser tocada pelos sopros do naipe das madeiras e por um contrabaixo, graças a uma transcrição do fagotista norte-americano Mark Popkin.

 

Serenata para Sopros de Dvořák

Antonín Dvořák compôs igualmente duas serenatas: a Op. 22 em 1875, para cordas, e a Op. 44 em 1878, para sopros, violoncelo e contrabaixo. Ambas se encontram a meio caminho entre a música de câmara e a música orquestral. A Serenata para Sopros, em particular, tem muitas afinidades com a Serenata N.º 2 de Brahms; sobretudo no andamento final, mas também ao longo dos quatro andamentos. Originalmente, foi composta para pares de oboés, clarinetes, fagotes e mais três trompas. Após a estreia, o compositor juntou um contrafagote (opcional), um violoncelo e um contrabaixo, de maneira a reforçar as partes mais graves. Portanto, também aqui os instrumentos de sopro assumem o protagonismo, ao passo que as cordas garantem a sustentação harmónica. Coincidem ainda numa atmosfera convivial e na alusão histórica aos clássicos setecentistas, desde logo com as já referidas ressonâncias do KV 361 de Mozart – curiosamente, o Andante da Serenata de Dvořák apresenta muitas semelhanças também com o Adagio da Gran Partita, do mesmo Mozart. A tudo isto, acrescenta-se aquilo que distinguia Dvořák: a apropriação da música tradicional da região da Boémia, por sinal distinguida nesse mesmo ano de 1878  com o enorme sucesso público das Danças Eslavas para Piano a 4 Mãos, imediatamente transcritas para orquestra. Tais referências são notórias no segundo andamento.

Brahms acompanhava e apoiava a carreira de Dvořák desde o início da década de 1870. Porém, só em dezembro de 1878 se conheceram pessoalmente, em Viena. Em maio do ano seguinte, Brahms escreveu a propósito desta mesma Serenata para Sopros, numa carta pessoal dirigida ao seu amigo Joseph Joachim, o seguinte: «A mais deliciosa e refrescante impressão de um verdadeiro talento, de tal maneira rico e encantador que se torna raro… Creio que os instrumentistas de sopros terão grande prazer em tocá-la!»

Rui Campos Leitão