Na página de rosto da primeira edição da Missa de Requiem de João Domingos Bomtempo, sobressaem o título da obra e o nome do compositor. Mas lê-se também «Ouvrage consacré à la Mémoire de Camões». Esta dedicatória é reveladora do propósito e do contexto em que a obra foi composta, em 1819. Chegaram-nos dezasseis exemplares das três centenas que foram impressas no princípio de 1820 pelo prestigiado editor musical francês Auguste Leduc. São cerca de duzentas páginas que inscrevem cada uma das notas que hoje podemos escutar.
**
Bomtempo foi o primeiro impulsionador da música orquestral no nosso país, tendo importado, para esse efeito, o modelo das Sociedades de Concertos que conheceu em Londres. Mas tal só se proporcionou depois de 1820, quando a Revolução Liberal enfrentou o absolutismo monárquico e abriu portas ao regime constitucional. Antes disso, este músico português, filho de um oboísta italiano radicado em Lisboa ao serviço da corte de D. José I, desenvolveu a sua carreira em Paris e Londres. Durante praticamente duas décadas, teve a oportunidade de aí se distinguir enquanto pianista e compositor, tendo o privilégio de contactar com uma prática musical intensa e muitos dos seus protagonistas.
Vivia-se então um período de grande agitação política. Foi o tempo do Império Napoleónico e das respetivas invasões. Mas também dos antecedentes que propiciaram a implantação do Liberalismo em Portugal. Nessa época, estavam exilados ilustres partidários dessa causa, tais como Morgado de Mateus, que promoveu desde Paris a edição d’Os Lusíadas. Iniciava-se então a recuperação dos principais escritores e pensadores nacionais, no sentido de promover a renovação política e espiritual que urgia implementar no nosso país. Embebido deste espírito, Bomtempo dedicou este seu trabalho a Luís Vaz de Camões; buscava também a oportunidade de conseguir o apoio de potenciais mecenas. A partitura foi terminada em 1818, ainda em Paris, mas só estreou publicamente no ano seguinte, em Londres. A edição foi patrocinada pela alta sociedade londrina e pela colónia portuguesa que ali permanecia.
O Requiem foi recebido com grande entusiasmo. Tal como as suas sinfonias, também esta obra está fortemente referenciada nas melhores práticas dos grandes mestres do classicismo vienense. Neste caso, a influência de Haydn prevalece, como o demonstra a solidez formal e a sobriedade que se faz sentir ao longo de toda a obra. No entender de Fernando Lopes Graça, a partitura relaciona-se estilisticamente com a produção religiosa de compositores como Haydn, Mozart, Beethoven e Cherubini. Sobretudo, Bomtempo conhecia bastante bem as obras corais sacras deste último compositor. Salvaguardadas todas as diferenças que resultam dos méritos artísticos de cada um, cabe aqui assinalar que estamos na presença de uma obra reveladora de uma excecional competência técnica e plenamente sintonizada com o que de mais inovador se fazia na época.
Rui Campos Leitão
Imagem: Capa da primeira edição da Missa de Requiem de Bomtempo guardada na Biblioteca Nacional de Portugal