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«O Pescador e a Lua» de Benjamin Attahir

No inverno de 2020, pedi ao compositor Benjamin Attahir para compor uma peça para a Temporada Cruzada Portugal-França 2022. Familiarizado com a poesia portuguesa, este compositor já tinha, no passado, colocado em música textos dos escritores lusófonos Mia Couto e José Luís Peixoto. A solução por si apresentada foi muito original: a soprano portuguesa Raquel Camarinha acompanhou o processo criativo, escrevendo o texto. Este inspira-se numa língua estranha, uma mistura de português e francês, «Uma linguagem bastante engraçada que ela fala diariamente com o seu jovem filho», salienta Benjamin Attahir. É hora de ir para a cama, hora da história para adormecer. Um pescador fala com a lua e com as estrelas. A mãe conta a história e a criança interrompe-a, interroga-a, entusiasma-se e sonha com ela. A história refere-se ao imaginário coletivo português da criação do fado, transportado pelo «povo do mar». Este fado com a sua «origem marítima, origem que se lhe vislumbra no seu ritmo onduloso como os movimentos cadenciados da vaga, balanceante como o jogar de bombordo a estibordo […] triste como as lamentações fluctívagas do Atlântico […] saudoso como a indefinível nostalgia da pátria ausente» [José Pinto de Carvalho, História do Fado, 1903].

Paradoxalmente, a música de Benjamin Attahir não se apropria de motivos musicais do fado. O compositor usa e distorce uma canção de embalar renascentista italiana, de Tarquinio Merula (1595-1665). Mas a magia acontece quando se ouve a canção invocar o «refluxo e fluxo do mar, o balanço do barco» e usar tonalidades harmónicas por vezes escuras e melancólicas. Benjamin Attahir também joga com a presença das duas personagens. A mãe, com a sua voz mais lírica, usa sobretudo o português. O compositor, cujas obras têm sido frequentemente inspiradas pela música oriental, aprecia a musicalidade poderosa desta língua, a força das duas entoações e a sua proximidade com o árabe. A criança, com um modo se expressão desajeitado que maltrata ambas as línguas, favorece o francês. Uma referência óbvia a L’Enfant et les Sortilèges de Ravel. 

A orquestração extremamente refinada de Benjamin Attahir e o seu gosto por combinações delicadas e literalmente inauditas de timbres inscrevem-se também na tradição raveliana. Para lá da referência ao universo dos contos de fadas, a «simplicidade» desta obra – pela sua curta duração, pela utilização que faz da pequena formação de Ma mère l’Oye e pela ausência de rasgos líricos trovejantes – faz dela uma espécie de miniatura. É uma homenagem às Cinco Peças Infantis, uma peça para piano a quatro mãos que se transformou numa suíte para orquestra, e depois num bailado, originalmente escrita por Ravel para duas crianças de 6 e 10 anos.

 

Michaël Cousteau

[Tradução de Rui Campos Leitão]