Os doze concerti grossi de António Pereira da Costa foram publicados em meados do século XVIII. Trata-se da mais importante produção do músico madeirense, muito embora se saiba pouco acerca da sua origem, sequer se alguma vez chegou a ser tocada no Funchal. Acerca da vida e obra deste músico, que foi Mestre de Capela da Sé, subsistem tantas dúvidas que alguns historiadores o apresentam como «figura misteriosa da Madeira».
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No subtítulo de um pequeno livro publicado pelo Governo Regional da Madeira em 2018, o musicólogo Paulo Esteireiro apresenta António Pereira da Costa como «uma figura misteriosa da Madeira». Sublinha, assim, essa mesma expressão que já havia sido utilizada pelo historiador Rui Carita dois anos antes. De facto, existem muitas incógnitas que persistem em torno da vida e da obra deste músico. Desde logo na data de nascimento, havendo diferentes teses que divergem num intervalo de duas décadas, entre 1697 e 1717. Levantou-se, inclusivamente, uma confusão de identidades com um músico homónimo que viveu no Porto na mesma época. Por outro lado, não se sabe qual seria o propósito original das suas composições instrumentais. Para lá do clero, os seus serviços também seriam contratados pelas principais casas senhoriais do arquipélago, o que explica porque a publicação dos concertos foi dedicada a João José de Vasconcelos Bettencourt, cujo brasão de família aparece estampado na capa do livro impresso. O mesmo é dizer que terá sido o morgado quem suportou as despesas desta compilação de peças compostas nas duas décadas anteriores a 1741, a data provável da publicação. Mas é admissível a hipótese de que estes concerti nunca tenham sido tocados por um ensemble de cordas. Ainda que se possa especular sobre a possibilidade de haver um agrupamento patrocinado pelos Vasconcelos Bettencourt, não há registo da existência de uma orquestra de cordas no Funchal naquela época
Há dois factos sobre os quais temos certezas. O primeiro confirma que Pereira da Costa desempenhou as funções de Mestre de Capela da Sé do Funchal. O segundo valida a atribuição da autoria e respetiva publicação em Londres de doze concerti grossi absolutamente únicos no contexto do século XVIII português. É consensual a valorização da sua raridade, já que são muito poucas as obras instrumentais portuguesas que se conhecem daquela época, em virtude da hegemonia da música vocal sacra. Apesar de todas as diferenças estilísticas, é curioso notar a sintonia formal com os doze concerti grossi do Op. 6 de Corelli, o que também demonstra a influência que tinha a música italiana entre nós.
Genericamente, um concerto grosso é uma obra escrita para um pequeno agrupamento instrumental e composto por secções contrastantes em que intervêm, por um lado, um número restrito de instrumentos (o concertino) e, por outro, o conjunto orquestral (o tutti). Os (também) doze concerti grossi de António Pereira da Costa tiveram a primeira audição moderna ao longo do primeiro semestre de 2019 no âmbito da programação da Orquestra Clássica da Madeira. A partitura que se mantinha silenciada na British Library foi então recuperada. Acontece que, por alguma razão, não se acha completa. Falta a parte de violoncelo do concertino, o que exigiu um trabalho de reconstrução e revisão científica realizado pelo cravista Giancarlo Mongelli. No final das contas, e entre tantas perguntas que se mantêm, fica-nos a certeza de que podemos ouvir hoje, passados quase quatro séculos, esta música belíssima que parece desatender as dúvidas historiográficas. O verdadeiro mistério que se impõe, afinal, é o mistério da música, em si mesma.
Rui Campos Leitão