A Canção da Terra tem um formato híbrido, algures achado entre a sinfonia e o ciclo de canções. Foi composta há pouco mais de um século, em 1908, altura em que se assistia no mundo a muitas transformações, também nos universos intelectual e artístico. Gustav Mahler mantinha então um forte vínculo com o passado, mas buscava alternativas. Nesta obra, sobrepôs ostensivamente alusões dispersas – conotadas com a natureza, com a poesia, com a filosofia, com a sua vida pessoal, com tradições populares e até mesmo com exotismos emprestados de culturas distantes. Juntou o canto lírico e a orquestra num exercício de erudição com tremenda densidade expressiva.
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No início do século XX os paradigmas civilizacionais sofreram uma profunda mudança à escala global. Os centros de poder económico haviam-se deslocado da França e Reino Unido para países emergentes, tais como a Alemanha, a Rússia e os E.U.A. O aço tomava o lugar do ferro. A indústria química registava um extraordinário crescimento e a eletricidade tornava-se num bem de consumo doméstico trivial. O telefone e a rádio davam passos largos no mesmo sentido. Os ideais socialistas tinham atingido enorme popularidade, originando importantes movimentos de cidadania que buscavam diferentes formas de organização comunitária. De certo modo, vivia-se sentimentos contraditórios. Sobrepunha-se o entusiasmo pelos novos recursos tecnológicos e a tensão gerada pelo questionamento de equilíbrios geoestratégicos aparentemente inabaláveis. Havia quem falasse de «crise». Aproximava-se a Primeira Grande Guerra.
Como é evidente, o universo intelectual e artístico não ficou imune a tudo isto, dando origem a uma sensibilidade bastante mais mundana do que a comoção afetiva e os rasgos heróicos que marcaram a estética romântica oitocentista. No âmbito da música, procuraram-se soluções técnicas alternativas, as quais conduziram a importantes rupturas com a linguagem do passado. Desenvolveu-se o atonalismo, a não-linearidade rítmica, a imprevisibilidade na construção do discurso, a progressiva exploração dos mais variados efeitos tímbricos possíveis de obter em instrumentos convencionais.
Mas nem todos os compositores optaram por uma postura contundente. Alguns buscaram recursos criativos que permitissem dialogar com a contemporaneidade sem, para tal, renegarem a imensa riqueza da tradição musical herdada. Integraram na criação musical elementos sonoros identificáveis com o quotidiano das pessoas. Incrementaram a importância da dimensão cénica associada à partitura, com sugestivas evocações da natureza, da poesia e da filosofia; deram protagonismo a elementos de cariz folclórico ou exótico, nestes casos tomando ideias emprestadas de culturas distantes. É neste contexto que se deve situar a profunda erudição e a grande densidade expressiva que se reconhece n’A Canção da Terra de Gustav Mahler.
Foi sem abdicar da mais depurada escrita orquestral – a qual tão bem dominava pela sua condição de maestro – que Mahler escreveu esta obra de formato híbrido, algures posicionada entre a sinfonia e o ciclo de canções. A partitura reúne seis peças que decorrem da tradição do Lied alemão, o que obrigava a uma escrupulosa atenção na escolha do texto. Neste caso, o compositor elegeu a tradução alemã de versos de autores chineses então recentemente publicados pelo poeta Hans Bethge num livro intitulado A Flauta Chinesa. Foi, portanto, com recurso a uma poética oriunda do Extremo Oriente que Mahler interpelou o Mundo, estabelecendo uma dicotomia filosófica assente em dois opostos, por sinal bem vincados nas palavras cantadas e na música que compôs. Por um lado, expunha a resignação do indivíduo perante o caráter transitório da existência humana. Por outro, invocava a perpétua renovação da vida. De um lado o efémero, do outro o eterno.
Tendo em conta o ânimo expressivo que predomina n’A Canção da Terra, ora melancólico e introspetivo, ora jovial, enfático e até histriónico, é tentador associação-lo à vida pessoal do autor. Com efeito, em dezembro de 1907 Mahler foi levado a demitir-se do cargo de Director Musical da Ópera Estatal de Viena, lugar que tinha ocupado durante uma década. Seis meses antes havia falecido a sua filha mais velha com escarlatina – ainda não contava cinco anos de idade. Como se não bastasse, viu ser-lhe diagnosticado uma inflamação do miocárdio incurável à época e cujas sequelas levariam à sua morte, quatro anos depois. Apesar de tudo, ao escutarmos hoje esta obra, quando estão volvidos pouco mais de cem anos sobre a data da sua composição, logo se torna evidente que essa abordagem seria redutora. Trata-se de música que vai muito além do umbigo do artista. Não deixa de nos surpreender com uma confrangedora atualidade. Assim se distinguem os grandes monumentos do património da Humanidade.
Rui Campos Leitão