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Na Senda de Haydn

A música para sopros tem uma longa tradição. Em Portugal, conhecemo-la bem das bandas militares e das bandas filarmónicas nascidas nos movimentos associativos do século XIX. Mas o alcance é bastante maior e remonta a séculos anteriores. Primeiro, em contextos festivos ou cerimoniosos. Depois, no período clássico, ao encontro do «novo gosto» das casas senhoriais que gravitavam em torno dos Habsburgos, em Viena. Chamavam-se Harmonie, esses agrupamentos que tocavam transcrições de excertos de óperas e de obras orquestrais em convívios informais. Compositores tão ilustres como Haydn exploraram essas sonoridades, consolidando progressivamente a secção de sopros da orquestra clássica. Abriram-se então novos caminhos para os pequenos ensembles de sopros, os quais perduraram até aos nossos dias. No século XX, compositores como George Enescu e Jean Françaix deram-lhes seguimento.

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Em 1759, aos 27 anos de idade, antes mesmo de entrar ao serviço da família Esterházy, Joseph Haydn desempenhou o cargo de Mestre de Capela do Conde Karl von Morzin. Este aristocrata era proprietário de um palacete de verão na Região da Boémia, hoje República Checa, mas permanecia em Viena nos períodos de inverno. Tinha então ao seu dispor um ensemble de músicos que tocava em ocasiões diversas, tais como refeições festivas e saraus ao ar livre com convidados ilustres. Foi para esses músicos que Haydn escreveu as suas primeiras Sinfonias e vários Divertimentos para instrumentos de sopro, os quais também se podiam chamar Partitas ou Serenatas. Destes últimos, chegaram-nos somente quatro. Consistem num encadeamento de cinco peças em disposição simétrica. Não escondem afinidades com as suítes instrumentais barrocas, mas o cunho de Haydn ressalta desde logo na escrita de partes distintas para cada um dos instrumentos, assim dispostos em pares de oboés, fagotes e trompas. Muito embora fosse música de circunstância, destinada a situações de entretenimento convivial, demonstra uma solidez técnica e uma desenvoltura criativa raras. As melodias são simples, mas cativantes. As progressões harmónicas são previsíveis, mas convincentes. Os ritmos são dançáveis, mas evitam a redundância. Sobretudo, oferece a oportunidade a cada um dos instrumentos de evidenciar a sua identidade própria.

Pulando até 1906, achamos o Deceto de Sopros do compositor romeno George Enescu. Neste caso juntam-se àqueles instrumentos duas flautas e dois clarinetes. Estruturado em três andamentos, o caráter rapsódico desta obra dá espaço a temas melódicos espontâneos e imprevisíveis, mostrando uma liberdade criativa que vai além das convenções tradicionais. Mistura os estilos clássico e romântico, mas também uma complexidade contrapontística que lhe acrescenta maior densidade expressiva e, simultaneamente, remete o ouvinte para imaginários dispersos, ora introspetivos ora distantes. Mantém, todavia, um enorme cuidado de escrita que lhe permite explorar de igual modo a variedade tímbrica de cada um dos instrumentos.

Recuperamos, pelo meio, uma criação de 1982 com assinatura de um compositor francês. Desta feita, as flautas dão lugar a uma trompete. Onze Variações Sobre um Tema de Haydn é uma homenagem espirituosa de Jean Françaix ao legado de Haydn. Revisita assim a tradição clássica com tal leveza e ironia que só dois séculos de História passados proporcionam. A escolha do tema principal – a melodia do segundo andamento da Sinfonia N.º 94 de Haydn – anuncia desde logo a disposição lúdica do exercício. Aquela sinfonia também se conhece pelo nome «Sinfonia Surpresa» em virtude do acorde incisivo que interrompe aquela mesma melodia ao fim de alguns segundos. Absolutamente inesperado, este evento sobressalta invariavelmente os melómanos mais desatentos e, ainda hoje, não deixa de arrancar sorrisos, ou não fossem a incongruência e o imprevisto recursos próprios do humor. Temos aqui a chave mestra para apreciar cada uma das onze variações que discorrem nesta partitura.

 

Rui Campos Leitão