O título Minha Mãe Ganso faz alusão ao livro de contos publicado por Charles Perrault em finais do século XVII. Trata-se de uma suíte de cinco peças composta por Maurice Ravel entre 1908 e 1910, duas das quais inspiradas em contos que aí se lêem e que nos são hoje bastante familiares: A Bela Adormecida e O Pequeno Polegarzinho. Com origem numa tradição oral que remonta à Idade Média, juntam-se aqui sob a figura lendária da Mãe Ganso, uma mulher do campo que contava histórias às crianças.
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Muito embora Ravel também tocasse piano, o seu instrumento de eleição era a orquestra; desde logo enquanto maestro, mas sobretudo enquanto compositor. O seu nome é uma referência incontornável na arte da orquestração. Distingue-se pela utilização meticulosa – por vezes pouco convencional – das qualidades específicas do som de cada instrumento, o que lhe permite construir «enredos musicais» inconfundíveis, explorar a paleta tímbrica como recurso dramatúrgico explícito e obter efeitos expressivos que sugerem no ouvinte referências extramusicais, sejam elas reais ou imaginárias.
Ravel compôs estas peças para serem tocadas por duas crianças ao piano, a 4 mãos. Para lá da coletânea de Perrault, inspirou-se igualmente noutros contos, tais como A Bela e Monstro, este publicado em França em meados do século XVIII. O sucesso despontou quando as duas crianças dedicatárias, de seis e dez anos, as tocaram em público em abril de 1910 na Salle Gaveau, em Paris. No ano seguinte rescreveu-as para orquestra. Fez ainda uma adaptação para um bailado que estreou em janeiro de 1912 no Théâtre des Arts, juntando então um Prelúdio e mais uma cena.
Instalam-se assim quadros vivos em forma de som; miniaturas construídas com orquestrações delicadas. Os instrumentos libertam-se de si mesmos. Encarnam animais, cores, cheiros, lugares, estações do ano… histórias de encantar. O registo agudo da flauta contrasta com os pizzicatti nas violas d’arco e o uníssono das trompas, uma atmosfera tranquila que tão certeiramente ilustra a Pavana da Bela Adormecida. O solo do oboé sobressai sobre cordas abafadas pela surdina nos cenários bucólicos por onde O Pequeno Polegarzinho vagueia. O som velado das cordas sul tasto (longe do cavalete) sustenta os motivos pentatónicos que se precipitam nos tímpanos, nos xilofones e nos sopros – retrato sugestivo d’A Imperatriz dos Pagodes. O som cristalino do clarinete junta-se às cordas numa valsa que ilustra os encontros amorosos da Bela e do Monstro. Com parcimónia, articulam-se num jardim fantasioso a volutuosidade das cordas e breves apontamentos de sucessivos instrumentos. Um verdadeiro tratado de orquestração!
Rui Campos Leitão
Imagem: «Le Petit Poucet» (1905) | Fonte: BnF Gallica