«Mais do que uma pintura, esta sinfonia é expressão de sentimentos» – assim fez questão de assinalar Ludwig van Beethoven no verso de uma das partes de violino pertencentes ao manuscrito original da Sinfonia N.º 6, a Pastoral. É, todavia, música que se inspira manifestamente em referências poéticas.
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Foi o próprio Ludwig van Beethoven quem fez questão de o sublinhar: a Sinfonia Pastoral não ilustra qualquer narrativa. Ainda assim, é música programática, na medida em que se apresenta associada a um universo extra-musical, importando sugestões e referências poéticas para a partitura. Desta forma, fica entregue a nós, ouvintes, a entretida tarefa de imaginar cenários e situações, de recriar enredos com total liberdade, de «condimentar» a escuta. O protagonista pode ser, afinal, cada um de nós.
A obra foi estreada no dia 22 de dezembro de 1808, no mesmo concerto em que também foram pela primeira vez tocadas a 5.ª Sinfonia, o 4.º Concerto para Piano e Orquestra e a Fantasia Coral Op. 80. Naquele programa, a Pastoral distinguia-se, desde logo, pelo experimentalismo sonoro. A retórica musical da partitura relaciona-se estreitamente com a evocação explícita de retratos poéticos da vida rural. As paisagens bucólicas e os ciclos da natureza serviam de pretexto para recursos de escrita que ainda hoje surpreendem. São ritmos obstinados, transformações progressivas, encadeamentos melódicos e texturas orquestrais cujos efeitos os livros não explicam.
As pistas são lançadas através dos títulos que foram atribuídos a cada um dos cinco andamentos, os quais foram impressos no programa de sala distribuído ao público presente: I. «Despertar de sentimentos alegres na chegada ao campo»; II. «Cena à beira do riacho»; III. «Alegre convívio de camponeses»; IV. «Trovões e tempestade»; V. «Canto do pastor: sentimentos alegres e gratos após a tempestade». Conforme os contrastes poéticos patentes, também a música vagueia por ambiências diversas. Há lugar para melodias lânguidas, danças rústicas e momentos de grande impetuosidade rítmica. O grande motivo inspirador é, claro está, a Natureza; o mesmo que já havia inspirado Antonio Vivaldi nas Quatro Estações.
Rui Campos Leitão