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Le Tour de Passe-Passe

[Texto do compositor Sérgio Azevedo / Junho de 2022]

Escrever um concerto para violino hoje em dia, após tantas obras-primas com lugar permanente no repertório, é francamente intimidante. Talvez por isso este concerto me tenha demorado o dobro do tempo a completar do que aquele que me foi necessário para os dois concertos anteriores (Concerto para Clarinete, em 2014, e Giochi di Uccelli – Concerto para Flauta, em 2017). Antes de escrever sequer uma nota, estabeleci que esta seria uma obra nos 3 andamentos habituais (embora a ordem fuja ao tradicional rápido-lento-rápido), que a relação do solista com a orquestra seria também aquela que se espera de um concerto, no qual o solista domina, e que o violino seria tratado como aquilo que sempre foi, ou seja, um instrumento lírico, destinado à melodia.

O primeiro andamento, qual ilusionista, como que tira ideias díspares «da cartola», mudando de uma secção para a seguinte quase sem transição, embora o seu carácter rapsódico e imprevisível («cercado» no início e no fim pela introdução lenta e pela reexposição desta) acabe por resultar num contínuo acumular de tensão que é, na realidade, o fio condutor do discurso musical e a essência da forma deste andamento.

O carácter endiabrado e incansável de Luna Park, o mais extrovertido dos três andamentos, fez-me lembrar – depois de escrito – um parque de diversões, onde há sempre algo em movimento e onde os carrosséis nos puxam e sacodem para cima e para baixo.

Finalmente, a lenta passacaglia do terceiro andamento possui um carácter onírico, sendo a melodia que lhe serve de base tratada de forma mais lírica do que contrapontística, para o que contribuem as intervenções solísticas do corne-inglês. O Concerto termina com uma dinâmica cada vez mais suave, “al niente” (“ao nada”), o que cria uma sensação de afastamento físico dos músicos em relação à audiência, e o violino solo, tal como começou, acaba novamente sozinho, como que perdido nos seus próprios pensamentos. A orquestra, que vinha diminuindo de dimensão desde o início, fica neste terceiro andamento praticamente reduzida às cordas, ao corne inglês e ao vibrafone.

O carácter melancólico, tantas vezes associado à morte, do corne-inglês (Wagner, Sibelius, Ravel…) faz deste andamento um longo adeus que dedico à memória do grande oboísta, meu colega e amigo, Samuel Bastos (1987-2019), cuja sonoridade no corne-inglês era particularmente bela e comovente.

[O Concerto para Violino “Le Tour de Passe-Passe” foi escrito entre 2020 e 2022 por encomenda da Orquestra Metropolitana de Lisboa, por iniciativa de Pedro Amaral, na altura seu Director Artístico, e destinado à Ana Pereira, concertino da Orquestra. À Ana, ao Pedro Amaral e ainda ao Pedro Neves, que dirigiu a estreia, dedico esta peça.]