Por ocasião da efeméride do 25 de Abril em 2016, a Orquestra de Câmara de Almada convidou Anne Victorino d’Almeida para estrear uma composição orquestral. O desafio resultou em Histórias de Abril, um título que não se refere à narração episódica da Revolução dos Cravos, mas sim à citação explícita de canções célebres de Zeca Afonso. Em abril de 2024, por ocasião do Cinquentenário, conversámos com a autora sobre essa maneira diferente de lembrar a História.
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Ao longo dos cerca de dez minutos, ressaltam em Histórias de Abril melodias como Grândola, Vila Morena, Os Vampiros, Vejam Bem, Canção de Embalar e Venham Mais Cinco. Mas é escusado buscar nas letras (implícitas) qualquer tipo de construção narrativa. Menos ainda se espere uma mera sequência de orquestrações sobre canções célebres. Em vez disso, trata-se de uma recriação livre da compositora sobre música com a qual admite identificar-se e ter uma afinidade genuína. «Quando a música é boa, ela permite-nos sonhar e transformar. Quando o núcleo é sólido, e está bem construído, permite-nos voar.»
A evocação da figura de Zeca Afonso foi instinto imediato. Recorda a sua presença próxima, em criança, na companhia do pai. Mas, sobretudo, pelo facto de ser protagonista e símbolo dos valores da Revolução. «Porque vivemos em liberdade há 50 anos, é importante recordarmos que houve um povo a quem devemos gratidão e fugirmos à ideia dos descontentes que agora optam pelo retrocesso, em vez de fazerem o que aquelas pessoas fizeram: lutar. A Cultura e a Educação não podem ser negligenciadas como tem vindo a acontecer. Elas combatem a memória curta, a falta de sensibilidade, a falta de recursos para entender. Mais do que nunca, está à vista, em todo o mundo, o quão importante é investirmos nestas áreas.»
E o resto é música. Esta será a única obra em que Anne criou sobre melodias pré-existentes – exceptuando O Homem na Cidade no Quarteto de Cordas N.º 3, tributo a Carlos do Carmo. O flautim destaca-se, como «representação da massa de gente que se juntou e transformou um movimento político numa força humana muitíssimo grande.» As melodias reinventam-se, como acontece quanto Vejam bem se apresenta transfigurada em estilo fugato. Numa corrida contra o tempo – duas semanas fechada em casa –, Anne Victorino d’Almeida completou uma obra que não sentimos «à pressa». Antes necessária e urgente, ou não fosse a composição musical «um instrumento de muita beleza sempre associado à ansiedade, à vontade de crescer e de descobrir coisas novas.»
Rui Campos Leitão
Foto de Anne Victorino d’Almeida / © João Vasco