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Em Louvor da Paz

O título da derradeira composição sinfónica de Fernando Lopes Graça é explícito na exaltação da convivência pacífica entre os povos de todo o mundo. Muito além das cinco linhas, assume-se como um manifesto social e político congruente com os desígnios que cunharam a vida do compositor. O seu legado é testemunho da convergência entre o exercício artístico e uma cidadania combativa e visionária. Em 1986, o ano em que completou o 80.º aniversário e recebeu a distinção da Grã Cruz da Ordem do Infante, persistia em ideais que continuam a fazer sentido.

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Em outubro de 1946, Fernando Lopes Graça publicou na revista cultural Seara Nova uma crónica intitulada «Regresso da Música». Começava assim:

«Já lá vai quase ano e meio passado sobre o horrível pesadelo da Guerra. Apesar das naturalíssimas dificuldades, após tão convulsionador cataclismo, em se assentarem as normas de uma Paz que tranquilize o espirito de uns – a grandíssima maioria – e tire a outros – a minoria que política e materialmente aproveita da Guerra – as esperanças, ainda tão vivas, de recomeçarem suas tripudiações sobre o corpo em chaga da Humanidade, esta parece começar a refazer-se da tragédia e a renascer para as actividades nobres e nobilitantes do pensamento, da arte e da ciência, tão vilipendiadas ou criminosamente reduzidas à mera categoria de instrumentos da loucura belicista pelas ideologias que promoveram a catástrofe e dela, afinal, foram as responsáveis vítimas.»

Passado pouco tempo, foi convidado para integrar a delegação portuguesa que no verão de 1948 participou no Congresso Mundial dos Intelectuais para o Futuro Pacífico do Mundo. Mais de 400 participantes escritores, artistas e cientistas – entre eles Pablo Picasso e Jorge Amado –, deslocaram-se a Breslávia (Polónia) em representação de 46 países. Era uma iniciativa diplomática enquadrada no contexto do pós-guerra com vista à promoção da Paz, da independência das nações e da cooperação internacional. No espólio guardado no Museu da Música Portuguesa, existem várias fotos dessa ocasião em que o músico aparece acompanhado pelo físico Manuel Valadares, pelo médico João Santos e pelo escritor Alves Redol. Já em 1985, com o fim da Guerra Fria no horizonte, recebeu outro convite, desta vez para estrear uma composição orquestral numa reedição do evento a realizar-se em Varsóvia no início do ano seguinte. Por alguma razão, não foi possível fazê-lo. Mas a encomenda manteve-se. Seria estreada em dezembro seguinte na cidade de Cracóvia, com a presença de Lopes Graça e a interpretação da Orquestra da Rádio e Televisão Polaca dirigida pelo maestro Szymon Kavalla (esse registo foi editado em vinil). Em Portugal, a estreia teve de esperar 20 anos, quando a Orquestra Sinfónica Portuguesa e o maestro Will Humburg assinalaram o centenário do nascimento do compositor no Teatro Nacional de São Carlos. Quem assistiu relata que não foi uma experiência satisfatória, porventura em virtude da dificuldade colocada pela imprecisão das partituras manuscritas. Voltou a ser programada em 2010 pela Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música sob direção do maestro Vasily Petrenko, resultando a gravação de um CD.

Temos de recuar até aos anos 1960 para achar as anteriores obras estritamente orquestrais de Fernando Lopes Graça, designadamente, as duas suítes Viagens na Minha Terra. Destacam-se, todavia, dois projetos de grande fôlego nos anos intermédios: o Requiem e as Sete Predicações de «Os Lusíadas», respetivamente de 1979 e 1980, estas com vozes solistas e coro. Entre todas, Em Louvor da Paz é aquela que mais se assemelha a um poema sinfónico, formato que favorece a liberdade estilística diante de convenções e expectativas. Deste modo, combina passagens líricas com momentos de tensão, parecendo propor um entendimento da Paz como algo que se conquista, ao invés da mera ausência de conflito. A sobreposição de sonoridades neoclássicas, modernistas e de raiz popular que atravessaram a carreira de Lopes Graça confrontam-se aqui de maneira a servir um plano dramatúrgico vacilante que busca harmonia entre tensões conflituantes. Além da tonalidade, harmonias dissonantes e modais entrelaçam-se em diálogos inconclusivos.

A partir do nada, irrompe uma melodia simultaneamente serena e majestosa que se espedaça vagarosamente à conta de provocações solísticas inconsequentes. Instala-se uma ambiência pungente, insistentemente entrecortada por motivos que buscam recuperar o fôlego inicial, sem sucesso. É como se o idílio se desvanecesse. Inesperadamente, surge um padrão rítmico jocoso – talvez um apontamento sarcástico ao jeito de Schostakovich. Segue-se um momento de ponderação que não impede, todavia, que seja retomada a azáfama no atropelo dos instrumentos. Uma nova respiração dolente desenrola-se obstinadamente, com traços ascendentes. Desemboca em melodias dançáveis. A dada altura, atinge-se um clímax, porventura a catástrofe. Longinquamente, a luz desponta num solo do violoncelo que em registo lamentoso divaga sobre os trémulos dos violinos. Um só violino responde, e a orquestra reemerge com rasgos beligerantes. Solos de oboé, violino e violoncelo em espírito conciliador parecem conduzir a um apontamento final festivo. Muito além de um ideal abstrato, assim se evoca a Paz em clamor de urgência diante da realidade.

 

Rui Campos Leitão

 

Imagem: Fernando Lopes Graça na sua casa da Parede, 1980, fotografia de Augusto Cabrita | Fundo FLG, MMP