Destilação é uma técnica que separa substâncias indistintamente misturadas num líquido. Entendida como processo de busca e revelação de elementos essenciais, serve aqui como metáfora para descrever aquilo que Thomas Adès se propôs fazer em 2006, quando transfigurou três peças musicais originalmente compostas para cravo por um músico que serviu o rei Luís XIV em Versailles, François Couperin. Poderiam ser meras transcrições para orquestra. Mas são muito mais do que isso. Como se usasse um caleidoscópio adaptado ao som e à escuta, Adès projetou ressonâncias e refrações que devolvem algo inteiramente novo.
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Thomas Adès compôs os Três Estudos Inspirados em Couperin para a Orquestra de Câmara de Basileia. Trata-se da recriação orquestral de três peças que concluem suítes publicadas em diferentes Livro(s) de Peças para Cravo; designadamente, Les Amusemens (1716), Les tours de passe-passe (1730) e L’âme-en-peine (1722). A sensação de estranheza é incontornável diante das expectativas próprias de quem conhece a música de Couperin. Tais «adulterações» podem ser compreendidas de diversas maneiras, desde a genuína homenagem a uma figura grandiosa da História da Música até, mais simplesmente, reminiscências com requintes de humor. Adès chamou-lhe «Estudos». Talvez seja essa a porta de entrada para este exercício que denota um conhecimento profundo das partituras em que se baseou. O compositor inglês identificou os elementos mais característicos de cada peça, fez escolhas cirúrgicas, acrescentou as suas próprias ideias e introduziu «distorções» improváveis. Realçou determinados aspetos em detrimento de outros.
O resultado é surpreendente. Na primeira peça, os «divertimentos» são em grande medida confiados aos sopros da orquestra. As oscilações de amplitude desafiam evidências e provocam «interferências» sobre a música original, como uma mensagem difusa que provém de outro espaço-tempo. No andamento central, os «truques de magia» exageram a articulações rítmicas, distorcem e criam desfasamentos por intermédio de acentuações inusitadas das cordas. No andamento final, «a dor de alma» projeta-se em arcadas dolentes que caricaturam qualquer registo fúnebre que se pudesse vislumbrar.
Rui Campos Leitão
Imagem: Thomas Adès em 2017 | Fonte: Wikimedia Commons