Fevereiro de 2020: entramos nos tempos mais tumultuosos e exigentes das nossas vidas. O mundo fecha-se sobre si mesmo, reinam o medo e a insegurança, a pandemia COVID-19 não permite adivinhar o dia de amanhã. Nesse momento em que me preparava para o primeiro confinamento, procurando organizar a complexa gestão familiar e profissional do que vinha pela frente, eis que recebo uma mensagem inesperada. O pianista Bruno Belthoise envia-me o mais belo convite que poderia receber naquele período sombrio: para escrever um concerto para piano e orquestra no âmbito da Temporada Cruzada Portugal-França 2022; pede-me também que a obra «evoque» Maurice Ravel.
A composição do concerto começou, portanto, em maio de 2020, durante o primeiro confinamento. Penso que evocar Ravel, um dos mestres da orquestração, só pode ser feito por intermédio da profundidade das suas melodias e harmonias, à qual se junta uma densidade orquestral única. Não pretendi recriar sonoridades ravelianas, mas sim inspirar-me no seu trabalho e na sua história.
O processo criativo é lento, interrompido diversas vezes pela situação pandémica, omnipresente e perturbadora. Em janeiro de 2021, precisamente a meio da escrita do concerto, a minha família é afligida por uma tragédia particularmente dolorosa: o meu primo Guillaume, de quem sou profundamente próxima desde a infância, morre em Rueil Malmaison (França) aos 49 anos de idade. Consegui viajar a tempo desde Lisboa para o ver uma última vez neste mundo. Ele deixou-nos no dia que se seguiu ao da minha chegada, enquanto lhe segurava a mão. A partir daí, tornou-se-me impossível não imprimir na partitura todas as emoções sentidas e vividas naquele dia 15 de janeiro. Na parte central do concerto, cada compasso é reflexo do Guillaume, a quem a obra é dedicada.
O Concerto para Piano e Orquestra, Op. 78, é marcado por sentimentos fortes e antagónicos, por uma intensa luta interior ao encontro do sentido da vida, da morte e do amor.
Anne Victorino d’Almeida
[Tradução de Rui Campos Leitão]