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As Sete Últimas Palavras

A Páscoa é uma das festividades mais importantes para o cristianismo, pois representa a ressurreição do filho de Deus. Mas tem um alcance ainda maior. Mas para lá do cerimonial religioso, o drama da morte de Cristo é uma narrativa que ajuda a melhor perceber a cultura e a mentalidade do Ocidente. As artes fazem eco disso mesmo. Composta em 1787, As Sete Últimas Palavras de Cristo de Joseph Haydn expressa emoções extremas, comoções limite que obrigam a um questionamento sobre a nossa forma de estar no Mundo e na Vida.

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Na tarde de Sexta-Feira Santa, os cristãos evocam o drama da morte de Cristo no Calvário, um ritual que remonta à Idade Média. Mais recentemente, de uma forma ou de outra, as igrejas católica, anglicana, ortodoxa e protestante erguem neste dia a cruz, como sinal de esperança e salvação da existência humana. Serve desse modo como exemplo a agonia de Jesus e a forma como enfrentou o sofrimento para incitamento à conversão dos pecados. Enquanto fenómeno de cultura, trata-se uma enorme referência do mundo ocidental, transcendendo largamente o cerimonial religioso, pela relevância social que tem há tantos séculos. Fértil em simbologias, é um universo que suscita as mais variadas leituras, algumas delas bastante controversas. Porém, e em todo o caso, é um património grandioso, também pela dimensão expressiva que encerra. Surge sempre carregado de emoções extremas, de uma comoção limite que interpela com contundência o mais tímido raciocínio que se disponha a questionar a nossa passagem pelo Mundo … e pela Vida.

Houve ao longo da História muitas obras musicais construídas em torno da Paixão de Cristo, mas são poucas aquelas que se focaram exclusivamente nas últimas palavras proferidas por Cristo no momento da crucificação, as quais nos chegaram por intermédio dos escritos dos evangelistas. Além das que foram sendo compostas ao longo do século XIX, em boa medida pautadas por um sentimentalismo imediato, houve duas outras mais bem conseguidas e que ainda hoje permanecem no repertório das salas de concerto: as As Sete Últimas Palavras de Cristo na Cruz de Heinrich Schütz, escrita em meados do século XVII, e a obra homónima de Joseph Haydn.

O propósito que esteve na origem desta sua criação foi bastante específico. Em 1687 deu-se um violento terramoto no Peru, causando a morte a cerca de meio milhar de pessoas. Em consequência da tragédia, um padre jesuíta introduziu um ato devoto específico na Sexta-Feira Santa em torno das últimas palavras de Cristo, uma forma de culto que vingou e migrou daí para Espanha, mais concretamente para Cádis. Assim, foi precisamente no primeiro centenário daquele acontecimento que Haydn – já então com uma carreira internacional firmada – viu ser-lhe encomendada uma partitura para a catedral daquela cidade portuária. Destinava-se a pontuar a leitura das respetivas passagens dos evangelhos e a meditação que sempre lhes seguia. Resultou uma introdução, sete sonatas (o mesmo é dizer sete peças instrumentais) e um final intitulado Il terramoto, ilustração musical que sintoniza o acontecimento atrás descrito com a narração da morte de Jesus. Assim se explica a sucessão de tantos andamentos lentos, uma prática que na época não faria sentido sem semelhante propósito. O próprio compositor, que chegou a adaptar esta partitura para agrupamentos instrumentais alternativos à orquestra, dirigiu esta obra na sua última aparição pública, em 1803.

 

Texto de Rui Campos Leitão