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As Barricadas Misteriosas

Originalmente, Les barricades mystérieuses é o título de uma pequena peça musical composta em 1717 por François Couperin e que foi publicada no seu segundo livro de peças para cravo. Já no final da década de 1980, o compositor italiano Luca Francesconi aceitou o desafio de «desvendar os enigmas» dessa partitura que tanto fascínio tem despertado desde há mais de três séculos. Na vez do cravo, as suas «barricadas» são tocadas por uma flauta solo à frente da orquestra.

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A pintura de René Magritte intitulada Les barricades mystérieuses é apenas uma das muitas criações artísticas inspiradas na misteriosa miniatura musical de François Couperin. Existem inúmeros outros casos, que se estendem desde livros a filmes, ao Jazz e à música eletrónica. Para lá do título, a partitura tem características singulares no contexto da música barroca, desde logo porque não ostenta uma melodia que possa ser entoada. Mas, sobretudo, porque numa primeira audição soa estranhamente estática. Só depois percebemos tratar-se de uma aparência enganadora. Tudo se desenrola numa textura sonora que se suspende na interligação de padrões propulsivos, que favorece uma imersão sensorial em prejuízo da teatralizarão imaginária de uma qualquer ação dramática. Instala-se, assim, um ambiente encantatório que convida à meditação contemplativa e desafia o ouvinte a abandonar quaisquer interpretações racionais. Cria-se um efeito hipnótico, uma ilusória intemporalidade que se constrói num processo interminável de encadeamentos cíclicos. Mas, afinal, que «barricadas misteriosas» são estas? A alternância entre as mãos esquerda e direita a que a partitura obriga sugere muitas leituras, tais como a impossibilidade comunicativa entre dois amantes, o eterno desencontro entre passado e presente, ou entre a imanência e a transcendência. Entende-se, portanto, que muitos tenham vislumbrado uma mensagem subliminar que se impõe desvendar.

Foi nesta senda que Luca Francesconi fez estrear esta sua obra em abril de 1990, pelo então jovem maestro italiano Daniele Gatti à frente da Orquestra I Pomeriggi Musicali no Conservatório Giuseppe Verdi, em Milão. A vocação eminentemente melódica da flauta confronta-se com uma bateria de impossibilidades que lhe são impostas pela orquestra, gerando desse modo uma tensão dramática que domina inexoravelmente. As «barricadas» são, neste caso, erguidas pela própria orquestra na confrontação com o solista, nas vertentes rítmica, melódica e harmónica, suscitando expectativas que se sucedem, mas que nunca são satisfeitas. Dos fluxos dinâmicos que se estabelecem entre as partes resulta uma progressão lenta. Como o próprio compositor escreveu, nas suas «barricadas» não existe um cravo nem as sonoridades galantes tão características do estilo barroco. Em vez disso, assiste-se a um «confronto incisivo entre o instinto e a razão».