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A Sinfonia Renana

Robert Schumann compôs quatro sinfonias. As números 2 e 3 foram aquelas que mais dúvidas levantaram junto dos críticos, em parte por terem sido as últimas a terem sido criadas, num período em que a saúde mental do músico se tornou mais inconstante. Mas o distanciamento histórico tem tratado de superar muitas dessas reservas. Quando hoje ouvimos os cinco andamentos da Sinfonia Renana (a terceira), saboreamos um belíssimo poema musical inspirado na cultura e nas gentes do rio Reno, transportados a meados do século romântico.

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A meio do livro Doutor Fausto, escrito por Thomas Mann na década de 1940, a personagem principal lembra a ocasião em que ouviu a terceira sinfonia de Robert Schumann. Refere, a propósito, a opinião de um crítico que elogiava a sua «concepção do mundo abrangente» e realçava a importância que teve o Romantismo para que «a Música [se emancipasse] da esfera dos especialistas provincianos e das bandas municipais, para pô-la em contato com o grande mundo do espírito […]» É certo que o nome de Schumann se inscreve na tradição clássica centro-europeia, e que a erudição artística não se afirma hoje do mesmo modo. Mas a sua música irradia um instinto de liberdade e uma disposição poética verdadeiramente singulares, como bem o comprova esta sinfonia de 1850, que muitos associam às paisagens e às gentes do rio Reno. Não foi Schumann quem lhe atribuiu o título de Renana, mas sim o seu primeiro biógrafo, Eduard von Wasielewski, também Concertino na ocasião de estreia da sinfonia, em fevereiro de 1851. Na realidade, é uma alusão oportuna ao contexto em que a obra foi composta. No outono de 1850, Schumann mudou-se com a família para a região da Renânia para se tornar Diretor Musical da cidade de Düsseldorf. Foi o entusiasmo desse novo capítulo da sua vida que o motivou para compor o seu Concerto para Violoncelo e, logo de seguida, esta sinfonia, que seria a sua última composição sinfónica. De certo modo, pode ser entendida como uma descrição rústica de modos de vida e de paisagens, um pouco à maneira da Sinfonia Pastoral de Beethoven, com a qual coincide no número de andamentos, muito embora não faça alusões concretas com títulos atribuídos a cada uma das partes.

Tudo começa de maneira exuberante, com uma melodia jovial que percorre a orquestra. Surge depois um segundo tema introduzido pelo oboé e pelo clarinete, e começa a adivinhar-se uma partitura com grande consistência temática, por intermédio de material comum que atravessará toda a obra. Ainda assim, é música liberta de amarras escolásticas, fruto do livre arbítrio e da imaginação, da inspiração, da intuição, da subjetividade do inconsciente. Apresenta, desde logo, elementos pouco habituais, tais como a métrica ternária deste primeiro andamento. Já no segundo e terceiro andamentos convida-nos a imaginar paisagens reminescentes de uma ideia de passado, através da evocação de uma antiga melodia tradicional daquela região e de uma Romanza plena de lirismo. O quarto andamento desenvolve-se num registo imponente e eclesiástico – a «Cena da Catedral». Terá sido inspirado numa curta deslocação que o músico fez à cidade de Colónia para assistir à cerimónia de empossamento como cardeal do arcebispo de Geissel. Em pleno processo criativo, trouxe consigo a ideia de utilizar o contraponto dos mestres da Renascença, para lá da solenidade do timbre dos trombones. No andamento final transparece a azáfama colorida de um dia de feira, alegre e animado, relembrando espaçadamente alguns temas que se ouviram anteriormente. Por sinal, a partitura termina com a mesma melodia solene que se ouviu na referida «Cena da Catedral».