O andamento final da Sinfonia Coral de Beethoven é arrebatador. Parece reunir «argumentos» bastantes para ser apresentado autonomamente. Junta-se, todavia, a mais três andamentos. Isso não acontece por acaso. Ao todo, são quatro partes com perfis expressivos vincados e de tal modo intensos que, apresentados em conjunto, se lhes vislumbra propósitos mais amplos. Quando ouvimos o Hino à Alegria, por si só, reconhecemos uma melodia de grande beleza e um valor simbólico singular. O que acontece, porém, quando o mesmo nos é dado a ouvir no contexto original?
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O início da sinfonia tem um caráter quase místico, como uma névoa harmónica que se assemelha por instantes ao som de uma orquestra no momento da afinação. Tudo emerge do nada para de rompante nos confrontarmos com uma violenta explosão sonora da orquestra. Os dados estão lançados. Fica claro «ao que vem» esta sinfonia – desafiar os limites da superação. Surge o primeiro grande tema melódico e percebemos tratar-se de uma obra com imenso fôlego, disposta a embarcar numa viagem aventurosa. As madeiras anunciam o segundo tema e, após uma breve transição, acontece-se o desenvolvimento que combina ambiguamente as ideias anteriores. A reexposição precipita-se para aquietar o tumulto. Há tempo ainda para a sugestão vaga de uma marcha fúnebre (não se sabe em memória de quem). Este andamento não se afirma com demonstrações de força, mas antes com registos de apreensão e agitação compulsiva. O ambiente dominante é apocalíptico.
O Scherzo tem uma caráter dionisíaco e junta-se às páginas mais vibrantes do compositor. Espelha bem o arquétipo do ímpeto furioso que associamos ao período intermédio da carreira de Beethoven. Os tímpanos assumem particular protagonismo, com erupções rítmicas que nos permitem adivinhar a exaltação do público de há duzentos anos. Sucessivamente, surgem contrapontos que exploram à exaustão o confronto entre as madeiras e as cordas. Com aparente facilidade, tudo se desenrola sobre uma construção complexa, com repetições insistentes, uma obstinação quase hipnótica. A secção central cumpre a função do Trio de um Minueto. Tem um ambiente sereno, bucólico e, sobretudo, contrastante.
Em comparação com o pendor atlético do que o antecedeu, o terceiro andamento é um oásis de calma e beleza, um Adagio que realça os contornos melódicos e as suspensões em silêncio. Baseia-se em variações sobre uma mesma melodia. Desenha-se, todavia, um percurso sinuoso cuja intensidade expressiva permanece relativamente distante, sem dramatismo – nunca submisso ou implorante –, como um gesto de clarividente aceitação.
Agora sim! Após três andamentos que substanciam diferentes fases de uma mesma experiência, resta saber como chegam até nós as ponderosas palavras do Hino à Alegria. Primeiro, uma introdução orquestral que instala progressivamente o ambiente dramático propício à eclosão das vozes. Um por um, vão sendo recuperados fragmentos marcantes do que se ouviu anteriormente. Convida o ouvinte para um exercício retrospetivo. Finalmente, os violoncelos e os contrabaixos murmuram a melodia que todos conhecemos na expansão de sucessivas variações. As três primeiras são exclusivamente instrumentais. As restantes percorrem uma variedade estilística desconcertante, desde a polifonia coral a uma marcha militar, ariosos vocais e até uma vigorosa fuga. Entretanto, ouve-se alguém cantar as palavras de Beethoven «Ó amigos, não esses sons! Ao invés, cantemos algo mais agradável e cheio de alegria!». É o Hino à Alegria.
A Missa solemnis foi composta pela mesma altura e termina com uma súplica não respondida. Há quem acredite que a Nona Sinfonia responde a todas as súplicas.
Rui Campos Leitão
Imagem: Detalhe do Frontispício da 1.º edição da Sinfonia Coral de Beethoven (Fonte: IMSLP)