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A Musa e o Ditador

Há dois episódios que ilustram bem a tensão que sempre existiu entre Dmitri Chostakovitch e o regime soviético. O primeiro remonta a 1936, quando uma récita da ópera Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk, assistida por Josef Estaline, resultou numa crítica feroz publicada no jornal Pravda. O segundo foi a acusação do Congresso Nacional de Compositores que em 1948 denunciava a sua música como formalista e adversa aos desígnios da Revolução. A Sinfonia N.º 10 foi composta em 1953, logo após a morte do «Grande Líder», pelo que foi sempre associada a esse acontecimento. Porém, mais recentemente, soube-se que a composição do 3.º andamento poderá ter sido inspirada na paixão por uma mulher. Multiplicam-se, deste modo, os enigmas que povoam o legado do músico russo.

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A Sinfonia N.º 10 foi a primeira obra orquestral de grande fôlego composta por Chostakovitch após a sua música ter sido praticamente banida pelas autoridades soviéticas, em 1948. O pretenso sarcasmo da sinfonia anterior, datada do final da guerra, obrigou então o músico a dedicar-se durante vários anos a compor para filmes laudatórios da figura de Estaline. A circunstância de ter sido realizada imediatamente após a morte do ditador tem suscitado leituras contraditórias, as quais se estendem desde a homenagem póstuma até ao repúdio das atrocidades do regime. Muitos crêem que a partitura retrata uma liderança opressora, sendo que o próprio compositor testemunhou que a contundência do segundo andamento ilustra a personalidade do dirigente.

Seja como for, é música que não se deixa resumir em formulações elementares. Uma das características que melhor a distinguem resulta das sugestões enigmáticas. Um pouco à semelhança de Mahler, as sinfonias de Chostakovitch desenrolam-se no encadeamento e justaposição de ideias difíceis de acomodar numa audição menos avisada. São propensas a uma obstinação que se afunda em angústia e resiliência, mas também são capazes de exaltações épicas, ou de se embalarem no doce encanto da afetação melódica. Com efeito, o planeamento estrutural das suas obras mais parece depender de dramaturgias laboriosamente articuladas do que de formas abstratas pré-definidas. Sem prejuízo do fundamento e oportunidade de quaisquer interpretações, será sempre redutor confiná-las nos contornos estritos de uma lápide em memória das vítimas das atrocidades exercidas pelo Homem sobre o Homem ou de qualquer outro exorcismo. Sente-se nelas uma urgência criativa profundamente humana, a qual resulta de constrangimentos inabaláveis, mas comprometida com uma transcendência que os ultrapassa.

Na música de Chostakovitch coexistem as determinações estéticas que impunham a representação simbólica dos ideais de um povo com o individualismo e a subjetividade. Por sinal, o terceiro andamento desta sinfonia desperta-nos a atenção para a segunda vertente. O segundo tema melódico, D-S-C-H, deriva do monograma do seu próprio nome (corresponde na notação musical alemã à sucessão de notas Ré-Mi Bemol-Dó-Si). Um pouco mais à frente, a trompa irrompe com um outro motivo melódico que, para lá de ter semelhanças com o tema da primeira canção do ciclo A Canção da Terra de Mahler, esconde outra proveniência. Segundo correspondência do próprio compositor, revelada nos anos 1990, resulta de um monograma obtido a partir do nome da uma sua aluna por quem esteve apaixonado, Elmira Nazirova, uma jovem pianista e compositora do Azerbeijão. As notas exteriores, E e A, correspondem nos países latinos ao Ré e ao Lá. Já para as três notas do meio, adotou-se essa nomeação que decorre da Solmização de Guido d’Arezzo. São o Lá, o Mi e o Ré. Obtemos, assim, E-Lá-Mi-Ré-A (Elmira).

São duas referências extra-musicais conotadas com esta partitura. Muitas outras existem. Elas não acrescentam nem omitem uma única nota, mas influem determinantemente na experiência de escuta que se proporciona. Constata-se, portanto, que o significado expressivo da obra musical não é algo absoluto. Depende também do sujeito a quem o ouvinte associa as emoções que lhe vão sendo sugeridas. Cabe-lhe, pois, desvendar em cada audição os significados da inquietação frenética do segundo andamento, da cortesia compassada do terceiro, do percurso anímico que nesta sinfonia emerge de sonoridades soturnas e atormentadas para desabrochar num último andamento que se afirma em rasgos de esperança.

 

Rui Campos Leitão

 

Imagem: Retrato de Dmitri Chostakovitch, por Tahir Salahov / Fonte: Flickr