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A Incompleta de Schubert

A Sinfonia Incompleta é a mais popular das sinfonias de Schubert. Chama-se assim porque só nos chegaram os dois primeiros andamentos. Estes foram escritos seis anos antes da sua morte, e não se conhece a razão pela qual abandonou o projeto. Podemos lamentar que assim tenha acontecido, mas também podemos dar graças pela existência destas páginas. Houve quem lhes chamasse «A meia sinfonia completa» de Schubert.

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Em bom rigor, Franz Schubert escreveu mais do que uma sinfonia incompleta. Na tradição clássica pressupõe-se que uma sinfonia tenha quatro andamentos. Schubert reconhecia-se nesta ideia, até porque tomava como modelo os legados de Haydn, Mozart e Beethoven. Porém, ao contrário do que se possa pensar, a composição de obras orquestrais correspondia à vertente mais privada da sua vida artística. Cabia às canções com piano preencher a dimensão pública, por vezes boémia, da sua criatividade. Quer isto dizer que o compositor austríaco escrevia sinfonias para satisfazer uma ambição artística grandiosa, mas para seu infortúnio nunca viu qualquer uma delas ser publicada. Deste modo, justifica-se que tenha abandonado vários projetos sinfónicos a meio, já que não satisfaziam compromissos acordados.

Schubert tentou compor treze sinfonias ao longo da vida. Somente sete foram cabalmente terminadas, seis delas entre os dezasseis e os dezanove anos de idade. Poucos anos mais tarde, mas já perto do final da vida, concluiu a sinfonia em Dó Maior, que se conhece hoje como A Grande, por vezes também indicada como a Sinfonia N.º 9. Existem, portanto, não uma, mas seis sinfonias incompletas de Schubert. Aos catorze anos esboçou fragmentos de uma Sinfonia em Ré Maior. Com datas posteriores à da Sinfonia N.º 6, conhecem-se diversos manuscritos dispersos, alguns dos quais pertencentes ao último período. Entretanto, falta na Sinfonia N.º 7 um número importante de páginas, ainda que seja possível uma reconstrução aproximada. Já em 1822, compôs os dois primeiros andamentos de uma Sinfonia que é frequentemente incluída nas programações das orquestras na atualidade, a Sinfonia Incompleta.

Esta é uma obra misteriosa por diversas razões. Primeira, porque, conhecendo-se somente os dois primeiros andamentos, somos convidados a imaginar o seu desenlace. Segunda, porque existem especulações que apontam para a possibilidade de o último andamento ter sido «desviado» pelo próprio compositor para a peça de teatro Rosamunde, princesa de Chipre, porventura para obter algum proveito financeiro imediato. Terceira, porque apresenta um estilo de escrita repleto de momentos de impasse e efeitos contrastantes inusitados. Ao longo de todo o primeiro andamento, o compositor nunca satisfaz o ouvinte com uma ideia conclusiva. Sucedem-se «perguntas, e mais perguntas», mas sempre sem resposta. O segundo andamento é dominado, de início, pelos uníssonos das cordas e o registo solene das madeiras, mas vê-se interrompido por diversas vezes com episódios ora de aparente apatia ora surpreendentemente dramáticos. As interrogações acumulam-se e, todavia, parece não faltar nada. Talvez por esse motivo o compositor inglês Brian Newbould tenha evitado a denominação de Sinfonia Incompleta. Preferia chamar-lhe «meia sinfonia completa».

 

Rui Campos Leitão

 

Image: «Mãos em prece» | Pintura inacabada de Peter Paul Rubens (1577–1640) | ca. de 1600 | Fonte: Wikimedia Commons