O Op. 43 de Beethoven reúne as peças musicais compostas em 1800 para um bailado com o título As Criaturas de Prometeu. No repertório mais convencional das salas de concerto, só os cinco minutos que lhe dão início conquistaram lugar. Mas há bastante mais por descobrir nesta criação musical que ilustra um dos mitos gregos que mais fascinava os leitores há dois séculos atrás, e continua a fascinar nos nossos dias.
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A convivência da Música com a Palavra tem sido uma das alianças mais profícuas da História das Artes. Por vezes, isso é evidente, como acontece na Ópera ou na Canção. Noutras, a expressão literária permanece discreta. Muita da música instrumental do século XIX pertence a esta última vertente, como acontece na música de Berlioz, Schumann e Liszt. Em qualquer dos casos, trata-se de uma relação complexa, cheia de compromissos, constrangimentos e possibilidades criativas inesgotáveis.
A música de bailado tem um caráter singular, neste matéria. Ela dispensa a componente vocal, mas articula-se com narrativas. A liberdade que lhe proporciona a ausência do texto cantado é subtraída na dramaturgia do espectáculo e na qualidade do movimento dançado. É curioso remontarmos aqui há pouco mais de dois séculos, altura em que o bailado clássico atravessou um período de grande desenvolvimento. Melhoraram-se então as metodologias de trabalho e as capacidades técnicas dos bailarinos – muitos profissionalizaram-se. Vincou-se a distinção entre o ballet e o aparato cerimonioso das danças sociais.
Para o melhor e para o pior, a Dança é uma arte efémera. Por isso não nos chegaram registos da coreografia de Salvatore Viganò. O que nos chegou do bailado foi um libreto construído em torno do mito de Prometeu, um dos Titãs descendentes da antiga raça de deuses destronada por Zeus, o Deus supremo do Olimpo. O gigante decidiu criar o Homem à semelhança dos deuses, a fim de dominar a Terra. Fê-lo a partir do barro e deu-lhe vida com a alma dos animais. A deusa Atena, concedeu-lhe o Espírito. O Conhecimento, o próprio Prometeu se encarregou de ensinar. Faltava, porém, o Fogo, que havia sido negado à Humanidade por Zeus. Zeus zangou-se quando Prometeu lho roubou e, tendo sido a sua vontade contrariada, determinou vingança. Mandou construir a estátua de uma jovem muito bela e chamou-lhe Pandora, aquela que possuiu todos os dons e levava consigo uma caixa que continha as maldições do Homem. Pandora desceu à Terra e, diante de Epimeteu, irmão de Prometeu, abriu a caixa. A Humanidade, que até então não conhecia a doença nem o sofrimento, encarou assim a perversão da existência. Entretanto, a caixa fechou-se, antes mesmo que dela saísse a única graça que trazia, a Esperança. Por fim, Zeus castigou Prometeu acorrentando-o ao cume do monte Cáucaso. Aí, todos os dias um abutre devorava-lhe o fígado que, de todas as maneiras, sempre se regenerava, por se tratar de um Titã. Hércules viria depois a libertá-lo.
Semelhante enredo convida a imaginar uma música plena de vigor e excessos expressivos. Mais ainda tendo em conta ser Beethoven o pai do romantismo musical, da libertação dos sentimentos e das mudanças de sonoridade repentistas. Contudo, a carga dramática do libreto do bailado foi bastante atenuada. Muitas partes do mito foram alteradas ou excluídas. Aí, o conhecimento é revelado através das Artes. No final, surge uma sequência de danças que celebra a obra de Prometeu. Para lá disso, naquela época o compositor alemão ainda atravessava o seu primeiro período criativo. Só mais tarde veio a sofrer os sintomas de surdez que o acompanharam ao longo do resto da vida. Trata-se de música tão bem escrita como só ele o sabia fazer, mas marcada por uma leveza e uma fluência que não correspondem ao arquétipo do artista atormentado e irreverente que lhe costumamos associar.
Texto de Rui Campos Leitão